— Triiiiimmmmm!
A sineta do portão alarmou com insistência. Uma, duas vezes. Frederico deitado diagonalmente numa fianga , na sala, não teve pressa. Barriga cheia, havia há pouco degustado uma passarinha acebolada e desmaiara o corpo, na rede, curtindo o banzo. O soar estridente da campainha, por outro lado, não lhe trouxe presságios adicionais. Era um sonido a mais e não lhe bateu na alma como se fora a sineta da escola interrompendo o recreio. Levantou-se com alguma dificuldade, tentando desentalar-se do fundo da rede que quase roçava o chão. Abriu a porta que rangeu, como uma cancela velha na estrada do sítio. Do outro lado, deu com um sujeitinho franzino, arrumadinho, olhos vivos, pasta debaixo do sovaco e um sorriso a meio pau. Na lapela, um crachá , onde estava escrito, em letras arqueadas: “Funerária Catacumba de Ouro “ e um pequeno slogan logo abaixo: “Providenciamos até o choro!” . No rodapé do crachá lia-se o nome em negrito do funcionário: Ernestino Braga.
Enquanto Frederico tentava entender as razões da inusitada visita, Braga, fazendo-se de íntimo, pediu autorização para entrar. Queria ter uma rápida conversa com o morador. Frederico, não escondendo algum contragosto, acedeu. O funcionário de “A Catacumba”, então, abancou-se na sala da frente, abriu a pasta, de lá sacou alguns folhetos e, com língua de camurça, abriu o verbo. Começou elogiando Frederico, perguntando seu nome. Depois, tentou adivinhar a idade do rapaz, claro, descontando ao menos uns quinze anos.
— Seu Frederico, a gente vê logo que o senhor está bem de vida e de saúde. Deve ter, se mal me engano, uns 45 anos! Acertei?
Frederico, então, informou que ele errara, já se tornara um “sexy”, arcando com seus sessenta e cinco. Foi aí que o vendedor pegou a estrada principal da conversa. Sabia que ele estava bem, mas que tinha familiares, não é mesmo? Frederico falou da ex esposa e dos três filhos que já não moravam com ele. Tinha ainda uma mãe, velhinha, beirando os noventa. O pai residia já nos álbuns de retratos.
— Pois é, seu Frederico. Por isso mesmo é que estou aqui. Sei que todos estão bem, sadios e felizes, mas ninguém sabe o dia de amanhã! O futuro a Deus pertence! Venho oferecer ao senhor, que sei que é um homem prevenido, um Plano Funerário. Torço, de coração, para que o senhor e os seus nunca venham utilizar. Mas, é sempre bom ter esse trunfo no bolso nas próximas jogadas do jogo da vida.
Como Frederico, mesmo calado, tivesse demonstrado algum interesse, perceptível no brilho do olhar, Ernestino debulhou os Planos oferecidos. Poderiam ser usados por até dez pessoas arroladas por ele. O pagamento, em prestações mensais, deviam se estender por toda vida do contratante.
— São três Planos, seu Frederico! O Plano “A Caminho do Céu”, oferece um caixão de boa qualidade, mas mais simples, assistência funerária na casa do defunto, uma coroa de flores. O Plano “Conversando com Pedroca”, acrescentará caixão vip, com assistência integral no Centro de Velório do Catacumba, missa de corpo presente e castiçais com velas flamejantes. E, finalmente, o nosso Plano Master, “Nos bracinhos de Jesus”, com todos os ingredientes oferecidos nos anteriores, aumentando-se uma urna mais chique, Missa Cantada no Centro de Velório, decoração com flores, acompanhamento musical com violinos, um orador para fazer um discurso de elogios ao falecido e , ainda, cinco carpideiras contratadas, com choro convulsivante, para o dia do sepultamento.
Por último, Ernestino puxou a tabela de preços que, segundo ele, estava em promoção. “Apesar de terem aumentado muito os preços pelo aumento da demanda nessa pandemia, seu Frederico!” . Ernestino descobriu que morrer estava pela hora da morte. Perguntou sobre a facilidade nos pagamentos. Kadecista que era, e Ernestino também (no meio da conversa ele assim se declarara), quis saber se a conta não poderia extrapolar para outras encarnações. Braga, no entanto, desconversou:
— Tem que ser tudo acertado nessa mesma, seu Frederico. Nas outras não dá certo, não! O senhor pode voltar como um pé rapado ou um velhaco desgraçado e aí , como vamos receber a conta? Além de tudo, o senhor já vai precisar de outro serviço quando morrer de novo, aí vai acumular. E não tem nem como, em caso de inadimplência, a gente pegar a mercadoria de volta. Por outro lado, se o senhor for um Espírito de Luz e não mais retornar a este mundo de expiação, como diabos a “Catacumba de Ouro” vai poder fazer a cobrança?
— E aí? Como é? Plano A, B ou C? Posso tirar a nota?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri