“Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre
as insignificâncias (do mundo e as nossas)”
Manoel de Barros
Percebo que estes são tempos de pouca leveza. Tempos de arminhas, da ira hidrofóbica dos brucutus. A dialética foi substituída pelo monólogo imposto pelo Big Brother. Eu, perdoe-me o Ortega y Gasset, sou abrigado a ser apenas eu: que vão às favas quaisquer circunstâncias. Tomou de assalto o mundo um utilitarismo grotesco e enviesado: cristãos pregando o armai-vos uns aos outros; corruptos defendendo o fim da corrupção; desconhecidos capítulos bíblicos, até então, agora a pregar o genocídio. Compreensível que, nesse Admirável Mundo Novo, a Arte seja perseguida e caçada como a raposa nas pradarias inglesas. Afinal, a Arte é libertária por excelência. Quebra amarras, folga nós górdios, derruba muros e cercas, abre horizontes.
Oscar Wilde dizia que a Arte é perfeitamente inútil e Leminsky rebatia que a Ela não tem, felizmente, nenhuma utilidade prática. A Arte não saca dinheiro em caixa eletrônico; não facilita, como uma calçadeira, a calçar o sapato; não melhora artrite de velho. A grandeza da Arte está na sua inutilidade: de se postar acima das meras escalas mercantis de valores; de escapar dos códigos de barras e das planilhas do Excel; de não se deixar medir e metrificar por trenas, por balanças de precisão ou por réguas. Num mundo tão previsível e cartesiano, onde a Lei da Selva e o Código de Hamurabi ganham força de Constituição, qualquer peça que tenha na inutilidade a sua força, tem como destino imediato o lixão.
O ouvinte me interrogará, de chofre: para que serve, afinal, uma coisa que não tem nenhuma utilidade prática? E eu lhes retorno com uma outra pergunta: só as coisas utilitárias preenchem nossa vida? Para que servem: a brisa do mar, a graça do voo do colibri, a estonteante beleza da aurora boreal, o cheiro de alfazema da campina em flor? Pois a Arte tem esse propósito: o de mostrar que existe vida para lá do nosso quintal; que a parte visível e palpável ao alcance dos nossos sentidos é, tão somente, uma das dimensões da grande complexidade da vida.
A poesia, base de toda Arte, me permite enxergar para além da palavra seca do dicionário. A fotografia, o cinema e a pintura me revelam ângulos e nuances que me passavam totalmente desapercebidos. A literatura me traz histórias que enlevam nossos dias que, tantas e tantas vezes, despem-se da roupagem de ficção e apresentam-se nus como a mais clara realidade. Ouvir Mozart ou Vivaldi é um teletransporte para aquele paraíso de onde um dia nossos ancestrais foram expulsos. A dança é a poesia em movimento, uma possibilidade de entender os fluxos ondulatórios e pendulares da vida. A Arte nos permite observar a existência em toda sua amplitude e diversidade, com a imagem infinitesimal e microscópica e a visão panorâmica de um drone.
Claro, você pode apegar-se ao mundo visível que está à sua frente e engolir as verdades pré-fabricadas que lhe vão servindo à mesa. O peixe no aquário também imagina que não há mundo para além do vidro. Se, no entanto, você quiser ir além do muro do seu quintal, desejar provar sensações que ultrapassem os sentidos; provar verdades outras além do caderninho de receitas que te ofertaram, você precisa de Arte. Ela lhe dará a chave, a senha e a possibilidade de curtir o mundo com filtro e com caleidoscópio. Se não, que se pode fazer? Apenas, depois, não venha dizer que a Arte é que é inútil. Não será assim a sua vidinha de painço e xerém na gaiola de ouro?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri