As imagens que vimos semana passada em Manaus pareciam fotografias remasterizadas dos campos de extermínios nazistas. Lá milhares de almas sufocadas pelo Zyklon B, no Amazonas centenas exterminadas, friamente, pelo simples corte do oxigênio que lhes livrava da asfixia. Nas duas situações, um massacre programado pelo estado. Na Europa, nazistas, como política nacional, em tempos de guerra, resolveram numa chacina em massa, livrar-se daquilo que consideravam um estorvo: os judeus. Aqui, programadamente também, em tempos sombrios de batalha sanitária, numa eutanásia passiva, o governo brasileiro, simplesmente, negou-se a amparar os necessitados, planejar uma assistência firme, para uma tragédia mais que anunciada. Virou as costas em atitude criminosa e negacionista: nomeou incapazes para tocar ministérios; prescreveu, como um charlatão de ponta de esquina, meizinhas sem qualquer comprovação científica; não moveu uma palha para conseguir vacinas salvadoras e os insumos imprescindíveis à sua aplicação; pôs-se, contra todas as evidências dos cientistas e organizações mundiais de saúde, a incentivar com atos e palavras: as aglomerações, o relaxamento no uso de medidas preventivas, a abertura do comércio e das escolas. Afinal, o problema era apenas uma gripezinha que já estava no finalzinho e só quem se protegeria eram os fracotes e maricas, afinal um dia todo mundo vai morrer… Sendo assim, porque não apressar um pouco, não é mesmo?
Em quarenta e quatro anos no exercício da Medicina, fui testemunha de tragédias inimagináveis. A morte e o sofrimento sempre me pareceram irmãos siameses das nossas chagas sociais. Vi crianças morrerem de doenças totalmente evitáveis como fome, desnutrição, violência e miséria. A cura delas, percebi cedo, estava bem além do alcance do meu estetoscópio e bisturi. Eu prescrevia um comprimido para ser tomado depois do almoço e da janta, sem desconfiar que muitos não tinham sequer o café da manhã garantido. Minha função inglória era uma espécie de enxugador de gelo ou a da criança que cava o buraco na areia da praia e, com uma canequinha, tenta transferir a água do oceano para o seu açudinho particular. A grande moléstia do país, descobri logo, era a desigualdade social, a força motriz de todos os outros grandes achaques do povo, a foice que a morte usa para estraçalhar suas vítimas. O SUS, nascido de um grande movimento cívico de Reforma Sanitária, trouxe novo alento. Com todas dificuldades , perseguições e boicotes que sofre, conseguiu erradicar nossas terríveis doenças de controle vacinal, impactou tremendamente as Mortalidades Infantil e Materna, minorou nossas taxas vergonhosas de desnutrição e criou um banco de dados estatísticos que pudesse basear futuros planejamentos na área da Saúde.
Qualquer médico da minha geração carrega consigo uma mala de lembranças benfazejas e gratificantes: a memória de tantos e tantos que conseguimos salvar com nossa Arte, apesar de todas as adversidades. Do outro lado da carga, no entanto, vai-nos junto, na viagem, um caçuá dos nossos insucessos, aqueles pacientes que, infelizmente, não tivemos a capacidade de beneficiar, seja por falha nossa, por desconhecimento ou porque o desafio estava acima dos poderes da nossa Ciência. O burrinho da nossa vida, que nos leva no topo da sela, carrega do lado estas duas malas e, frequentemente, pomo-nos a olhar para elas, talvez para se certificar para que lado a carga pende.
Confesso, porém, que as imagens que presenciei ontem jamais as tinha visto durante toda minha vida profissional. Pacientes morrendo aos borbotões em UTIs e enfermarias abarrotadas, sufocados por falta de oxigênio. Familiares abraçados chorando, médicos, enfermeiras desolados e inconsoláveis. Um dia de juízo final. Imediatamente pus-me no lugar de incontáveis colegas: estafados, cansados, sobrecarregados e, de repente, se sentindo um simples funcionário de um forno de Auschwitz Birkenau. Era o Dia D que o ministro da saúde havia previsto: D de desolação, D de desastre, D de demolição, D de desgraça, D de destruição.
Depois da II Guerra, os responsáveis pelo Holocausto foram levados ao Tribunal de Nuremberg e sentenciados. Aqui, passada a batalha sanitária, os culpados nem vão precisar de advogados, já estão julgados e condenados: os que morreram! Quem mandou terem pouco fôlego!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri