Você deve levar um pouco mais de dois minutos para terminar de ler essa matéria. Nesse tempo, uma mulher terá sido agredida fisicamente em algum lugar do Brasil, segundo os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Os desdobramentos deste tipo de violência acabam sendo fatais e afetam profundamente – e para sempre – pessoas como o João Lucas (nome fictício): uma criança que hoje vive a lembrança de um lar destruído, após ter presenciado o assassinato da mãe no Interior do Ceará. O autor do crime: o pai da criança.
Essa história é um exemplo semelhante de outras tantas referenciadas em um estudo que buscou analisar o panorama dos 41 crimes de feminicídio no Estado, cadastrados no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), nos anos de 2018 e 2019. O levantamento detalhado revelou que todas as mulheres mortas já tinham sofrido violência doméstica, sendo 37,5% com histórico de violência física e aproximadamente 87,80% (36) delas eram mães.
O estudo foi promovido pelo Grupo de Apoio e Pesquisa à Persecução Penal (GAPPE), composto por pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenado pelo professor José Macêdo. Os dados revelados são preocupantes: a maioria das vítimas era maior de 31 anos (70,73%); tinha filhos menores de 14 anos (73,41%); e em comum com o assassino (43,90%).
O Ceará, segundo o Atlas da Violência (2019), possui um dos maiores índices de feminicídio do País, representando a segunda maior taxa de crescimento desse tipo de violência (176,9%). Em menos de três anos, já atingiu a marca de 84 feminicídios. Sendo 27 em 2018, 34 em 2019, e até outubro deste ano já são 24.
Para Rebeca Quezado, advogada e uma das pesquisadoras do estudo, esse tipo de crime “compreende a forma mais extrema de violência contra a mulher. Por isso o estudo se baseia em compreender de forma aprofundada esse fenômeno criminoso; a partir de indicadores que perfilam aspectos sociais e pessoais das vítimas e dos agressores”, explica a estudiosa.
A pesquisa também revelou que os assassinos não confessaram o feminicídio (63,41%); apresentavam vínculo afetivo com as vítimas como companheiros (31,70%); não eram reincidentes (78,04%), porém tinham histórico criminal (46,34%) em crimes violentos (36,58%); possuem filhos menores de idade (48,78%) e em comum com as vítimas (46,34%).
Filhos
O estudo, ainda não publicado, analisou 13 mil páginas de processos judiciais, computando os casos (na pesquisa) que chegaram até o Poder Judiciário. No entanto, as estimativas poderiam ser ainda maiores, segundo relata Rebeca. “Teoricamente, poderia ter alguma vítima que fosse mãe, entretanto, não foi contabilizado no processo judicial, justamente por não haver essa confirmação nos autos do processo, por nenhuma das partes envolvidas”, conclui.
Existe um outro lado da violência: a dor de quem permanece. “Tudo é diferente, porque eu não tenho mais ela, eu dormia com ela toda noite, junto com meu irmão, era bom”, comenta o João Lucas (nome fictício), o filho menor de idade de uma vítima, que terá também sua identidade e detalhes do caso preservados nesta matéria.
A criança estava ao lado da mãe quando o crime aconteceu. Ele lembra constantemente do dia em que perdeu sua mãe pelas mãos de seu próprio pai. “Vi que foi o papai, eu vi ela caída, mas ela não conseguia conversar”. As ameaças eram constantes. O medo de que um dia ele a matasse, também. “Não tenho vontade de ver o meu pai, não gosto mais dele, ele matou minha mãe”, concluiu.
Gleiciane Ferreira é a mais velha de três irmãos e trabalha como manicure. Foi ela quem ligou para a Polícia dizendo que a mãe tinha sido morta pelo pai e ele precisava ser preso.
Ela relata dores profundas que ficaram em seus pensamentos relacionadas a dúvidas e suposições que jamais serão respondidas, já que não se pode voltar no tempo. Para lidar com o que não tem solução, se apega a fé.
“Fico pensando que não devia ter saído de casa naquela hora. Entreguei nas mãos de Deus. Ele sabe de todas as coisas. É difícil porque hoje não temos mais nenhum dos dois em casa. Fui uma vez visitar ele no presídio, depois não fui mais. Ele nega até hoje que matou ela, mas também diz que não sabe quem matou”, afirmou Gleiciane.
Ela e os irmãos, de 21 e 19 anos, permanecem morando na mesma casa cenário da tragédia. Perderam os dois provedores da família e, mais do que nunca, contam uns com os outros para seguir.
“Não temos para onde ir. Peço força a Deus e sigo em frente. Ele está preso pagando pelo que fez. Estragou a nossa família”, fala. “Sem dúvidas, é uma marca que vai ficar na vida daquela criança e suporte psicológico vai ser essencial para que se reduza os danos causados por esta violência”, relata Jéssica Cavalcante, psicóloga da rede Acolhe – Projeto da Defensoria Pública do Estado (DPCE) que presta assistência às vítimas de violência no Ceará. Segundo ela, o seu papel, enquanto psicóloga da rede Acolhe, é fazer uma escuta qualificada da família e da criança.
A psicóloga relata que “algumas vezes, elas (crianças) podem mudar o comportamento, pode surgir uma agressividade, dificuldade expressar os sentimentos, o rendimento na escola costuma cair. Algumas não querem falar sobre o assunto, outras já querem falar o tempo todo. Quem vai cuidar daquela criança não está, muitas vezes, acostumada ou não sabe lidar com esses comportamentos”, explica.
No entanto, “não se pode generalizar”, alerta Jéssica. “As crianças têm uma capacidade de resiliência e resistência, além disso a rede de apoio que essa criança tem pode ser um fator de proteção quanto aos impactos. Nosso papel é orientar sobre a importância do acompanhamento psicológico e de outras intervenções, se necessário, desde cedo, para que aquela criança encontre um espaço de desenvolvimento mais saudável possível”, conclui.
Por Natali Carvalho/Emanoela Campelo de Melo
Fonte: Diário do Nordeste