“Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma”
Alberto Caeiro
Quando a Comissão Científica de Exploração passou no Cariri, no finalzinho de 1859, o médico Francisco Freire Alemão, presidente da Comissão, observou, no seu Relatório, a grande quantidade de cegos na região: “Há casas que têm dois ou três pessoas cegas”, frisou ele. Freire Alemão atribuía a causa da calamidade às oftalmias e a falta de cuidados higiênicos da população. George Gardner, que estivera conosco uns vinte anos antes, já alertara que em nenhum local do Brasil tinha visto tantos cegos. Descobriu-se no início do Século XX que a razão de tanta cegueira devia-se, o mais das vezes, a uma doença infectocontagiosa chamada de tracoma. No Sul Cearense, por razões ainda desconhecidas, a doença era endêmica e atingiu amplamente, nossos colonizadores, desde o início do Século XVIII. O Cariri terminou por se tornar o polo disseminador da moléstia, para todo o Brasil, impulsionado, principalmente pelas ondas migratórias tão frequentes entre os nordestinos. No início dos Novecentos , o oftalmologista José Furtado Filho, de Crato, estimava em 80% o número de seus pacientes tracomatosos e, a seu ver, quase a metade dos cegos devia-se à tracoma.
Em 1956 o Departamento Nacional de Endemias Rurais, em levantamento, mostrava entre 80 a 90% a contaminação por tracoma em Crato, Juazeiro e Barbalha. Essa situação levou a que o Ministro da Saúde, Mário Pinotti, nos governos de Getúlio Vargas e, depois, Juscelino Kubitscheck, empreende-se um grande combate a esta praga aqui no Cariri, preocupado não com o nosso problema específico, mas com a certeza de que seria impossível resolver o problema em nível nacional, sem enfrentar seu principal foco disseminador.
Em 1959 viria ao Crato o Dr. Hermínio Conde enviado pelo Ministério da Saúde para pugnar contra a terrível mazela. Arregimentou, aqui, uma plêiade de médicos de renome: Leão Sampaio, Mauro Malzoni, Possidônio Bem, José Ulisses Peixoto, Eldon Cariri, Fábio Esmeraldo, Maurício Teles, Pio Sampaio, Lyrio Callou, Romão Sampaio, só para citar alguns. O KG foi instalado no Hospital São Francisco em Crato e esta data marca, historicamente, o declínio da terrível fábrica de cegos centenariamente montada no Cariri.
Este preâmbulo fez-se necessário para lembrar um dos nossos mais heroicos combatentes do tracoma: Dr. Ebert Fernandes Teles. Oftalmologista de formação, formado em 1952, radicado em Crato, ele fez-se um dos mais renhidos guerreiros da Saúde Ocular do estado, sob a égide do Dr. Hermínio Conde. Dr. Ebert exerceu a profissão, missionariamente, por mais de sessenta anos e, nesta semana, por fim, o tempo ofertou-lhe o merecido descanso de guerreiro.
Em época tão fluida, onde a memória fixa-se, ilusoriamente, em meses e dias, os muitos que hoje receberam o prêmio de curtir a vida e a natureza com toda sua variedade de nuances e cores, no ofertório de suas orações, precisam levar flores ao Dr. Ebert Fernandes Teles que abriu janelas e frestas para que pudessem ver a vida e, depois, deterem-se nos enigmas inexpugnáveis da Filosofia.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri