Tenho pensado em escrever algumas coisas sobre a complexidade de se viver com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Talvez uma série de vídeos. Com cunho informativo, mas também catártico. Não exatamente pela perspectiva do psicólogo, mas a de quem vem lidando com isso desde sempre.
A primeira coisa que tenho vontade de registrar é que quando estamos (os portadores desse transtorno) absolutamente concentrados em algo, todo o resto do universo circundante, simplesmente deixa de existir. Não conseguimos, de modo eficiente, lidar com mais de um item de realidade, ao mesmo tempo. A não ser que desenvolvamos complexas estratégias mentais.
Lavar a louça, por exemplo. Faço muito e sou eficiente, mesmo que demorado. Para dar conta disso, ponho o fone no ouvido e escolho uma playlist cuja seleção, inteiramente, me capture. Concentro-me, então, completamente, nas canções. Transporto-me pro que estou ouvindo, tento entender a estrutura de cada canção, procuro uma forma de cantarolar junto no tom adequado, imagino cenários, impressiono-me com um agudo cristalino, piro numa passagem da letra.
E a louça? Lavo como um autômato. Um robô. Na verdade, enquanto lavo, com impecável desempenho, não estou conectado com o que estou fazendo. Só ligo no automático. Afinal, quem protagoniza a ação não sou exatamente EU. Autorizo-me, como nunca, a me jogar no palco ou na plateia da canção, e levo todo meu pensamento pra lá. O cenário não é uma pia. Estou em outro lugar. Minha atenção está completamente lá… no universo do cantor ou da canção ouvida. E então, vapt-vupt, uma panela de pressão com um restinho, ainda, do feijão carioquinha de ontem, não é algo a que me ponho atento. Ela não me interessa. Meu cérebro já entendeu (na verdade, já sabe) o que fazer. Entretanto, não estou ali por inteiro. Só a lavo, perfeitamente, sem me dar conta, enquanto estou impressionado com a emissão perfeita da voz de um intérprete e com a poesia que ele faz desfilar.
Pra me tirar desse “transe” é um pouco complicado. É preciso entender que demoro um pouco pra voltar… e que algum barulho horroroso, dentro ou fora de casa, não será percebido. Aquele agudo sensacional da Gal, na música que estiver tocando, é só o que espero… e o eu-robô está completamente lá. O corpo e alguns sentidos estão lavando louça. A alma está nos mares turquezados dos quais Marina nos sopra numa próxima canção, por exemplo.
O mesmo acontece na rua. Frequentemente quase esbarro em alguém super amigo ou conhecido e sigo sem cumprimentar a pessoa, obviamente sem querer, ou perceber. Estou caminhando ou dirigindo e tento manter minha concentração em cada passo que dou, num perímetro visual, sob meu domínio. De repente, vejo um amigo na praça em frente e saio do meu planeta pessoal pra cumprimentá-lo. Seus filhos estão brincando em volta… e eu os ignoro. Já foi difícil, às vezes, sair do foco que é: chegar vivo no supermercado… então, não me distraio muito. Ajo como um cara aparentemente blasé, que não sou, sem sequer me dar conta disso. E depois de algumas horas, quando já estou no super, ou em casa, lembro das crianças brincando e me dá aquele frio na barriga, tipo: Gente…. quem mais estava na pracinha, além de Fulana, a quem cumprimentei efusivamente? E logo me vem um registro de que “o mundo inteiro” estava na praça e eu… no modo autístico.
E ler, então? Leio bem menos do que um cara que reconhece a enormidade do valor de um livro. Pra ler, preciso de todo um cenário especial, de preferência sozinho em casa. E então, se a escrita me interessa, transporto-me completamente pras suas páginas. Só percebo que alguém tocou a campainha, quando a cachorra late como se não houvesse amanhã, pra me avisar. Há uma hiperatenção pra algo, em detrimento do resto. Do todo.
Quando assisto a um filme ou série… ou mesmo uma imbecilidade na TV, programo-me pra não deixar o pensamento fluir pra longe, senão… quando volto, sinto-me perdido e preciso retomar quase do zero.
Pra encerrar… Luís me chamou no quarto… deve ter chamado dez vezes… agora ouvi e vou lá.
Ah… não estou usando ritalina. Talvez volte. Vou ler esse texto pra um médico. Porque se for falar sobre TDAH com ele, em segundos desviarei a fala para as vicissitudes do amor, ou meu ódio extremado pelo Bolsonaro e a bagaceirada à sua volta.
Ó… O bixu me chamando de novo. Tinha esquecido, e voltado pro que estou escrevendo.
Disse-lhe que já ia.
Daqui há pouco atendo ao chamado. Agora pensei em lhes dizer que perco tudo (T-U-D-O). Chaves, Carteira, celular. Quando chego em casa… primeiro a festa pros cachorros e gatos… depois a atenção aos humanos. Frequentemente vou deixando as coisas pelo caminho.
Enfim… distraí-me agora… outra hora volto… concentrado!
Ricardo Bazán Selbach é psicólogo e mora em Porto Alegre (RS).
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri