O sertanejo aprendeu a conviver com uma realidade de alternâncias: chove bem em um período, nos outros há estiagem. Em 2020, a quadra chuvosa (fevereiro a maio) ficou acima da média histórica pela primeira vez nos últimos 10 anos e garantiu melhor distribuição do recurso para áreas mais necessitadas.
No entanto, até chegar aos 155 reservatórios estratégicos, monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh), a água atravessa um grande percurso, podendo ficar retida em pequenos açudes. Para mensurar esse impacto, no entanto, é preciso conhecer a realidade.
Em pesquisa inédita, a Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) já identificou 89.490 barragens de pequeno, médio e grande porte no Ceará. “Usando imagens de satélite de alta resolução espacial, que permitem mapear estruturas bem pequenas, foram identificadas, praticamente, todas as barragens existentes no Estado, com ou sem água”, explica Margareth Benício, gerente de Estudos e Pesquisa em Meio Ambiente da Funceme. “São mapeadas todas as barragens que possuem parede medindo acima de 20 metros”, ressalta. O estudo está em fase de conclusão.
Segundo ela, os pequenos barramentos podem reduzir o aporte, em anos secos, dos grandes reservatórios, considerados estratégicos. “O que existe é uma informação relevante. Pensávamos que o Estado só tinha 23 mil barragens e, na realidade, ele tem mais de 80 mil, o que torna o estudo ainda mais valioso para a gestão dos recursos hídricos e para o plano de segurança de barragens”, defende.
A gerente também aponta que ter, em mãos, o monitoramento com este grau de detalhamento ajuda na decisão sobre novos projetos de construção de obras hídricas, a nível estadual, além de alertar para os cuidados com os grandes reservatórios estratégicos em caso de eventuais rupturas das pequenas barragens.
Divergência
Por outro lado, pesquisadores especialistas na questão hídrica questionam o tamanho do impacto realmente gerado pelas pequenas estruturas e defendem que elas são fundamentais na vida do pequeno produtor, trazendo, também, impactos positivos. O Projeto Água na Caatinga, desenvolvido por pesquisadores no Ceará, considera a existência de aproximadamente 23 mil pequenos açudes com áreas acima de 1 hectare, distribuídos por todo o território cearense. O número foi obtido com base em dados globais a partir de 3,5 mi de imagens do satélite.
Segundo o idealizador do projeto e engenheiro, Pedro Medeiros, este seria o número que mais se aproxima da realidade. Em documento enviado ao Sistema Verdes Mares, assinado por ele e pelos pesquisadores José Carlos de Araújo e Pedro Molinas, o grupo defende que, embora retenham parte da água que chegaria aos reservatórios estratégicos, os pequenos açudes têm impactado positivamente o sistema hídrico. “Retêm uma grande parcela dos sedimentos que são carreados pelo escoamento; distribuem equitativamente a água em todo o território cearense; e são fundamentais para o desenvolvimento das economias locais e a subsistência das pessoas no meio rural”, defendem.
Segundo os pesquisadores, apesar da grande quantidade, os pequenos açudes, juntos, só conseguem acumular 5% da capacidade de reserva do Ceará, que é de 1 bilhão de m³. “Sozinho, o Castanhão é capaz de acumular 6,7 bilhões de m³, ou mais de 30% da acumulação total do Estado”, aponta o documento. ‘É válido questionar a retenção de água em pequenos açudes que abastecem comunidades rurais em detrimento do acúmulo de água em grandes açudes destinados ao abastecimento de grandes centros urbanos? Esta é uma reflexão que a sociedade cearense precisa fazer”, acrescenta.
Potencialidades
Para melhor explorar as potencialidades dos pequenos açudes os especialistas do Água na Caatinga defendem que é preciso desmistificar o que se tornou cultural: a noção de que água reservada significa garantia hídrica. “Essa noção se difundiu na sociedade e a população rural acabou adotando-a para os pequenos açudes”, explica Medeiros.
“No entanto, em sua maioria, esses açudes são rasos, não suportam vencer longos período de seca e acabam secando mesmo com baixas retiradas de água por conta da evaporação elevada”. Pensando nisso, o projeto criou um modelo para potencializar esse uso, fazendo com que o produtor tenha maior renda. “Constatamos que o potencial máximo é tirado quando a água é usada intensamente durante 4 a 8 meses ao ano”, cita Medeiros. Porém, há um limite na retirada e a regra se aplica nos casos em que existe outra fonte para o abastecimento humano.
Importância
Antônio Flaviano, presidente da Cooperativa Cearense de Produtores Familiares, com sede em Maranguape, ressalta que estes açudes são responsáveis pela maior parte da produção familiar no Estado. “Aqui em Maranguape, por exemplo, cerca de 70% da produção vem deles”, avalia. “No período do verão, os açudes são usados para o sistema de irrigação, através de bombeamento. Hoje, estão cheios e a gente já está utilizando, até a quadra chuvosa seguinte”.
Reserva hídrica
Para além da divergência entre os pensamentos acerca dos impactos dos pequenos barramentos, há consenso de que a quadra chuvosa deste ano trouxe bom aporte para a maioria desses milhares de reservatórios cearenses. A avaliação é da Cogerh, que monitora os 155 reservatórios considerados estratégicos no Estado. Após estiagem prolongada nos últimos anos, o aporte do Ceará, até ontem (24), era de 33,85%, mesmo após quase dois meses do fim do período chuvoso.
Este bom volume permite a transferência de água, ao longo do segundo semestre do ano, para reservatórios ou regiões mais críticas. O reforço se tornou ainda mais importante durante a pandemia de Covid-19. No início de julho, os três principais reservatórios do Ceará (Castanhão, com 15,4%; Banabuiú 14,2% e Orós, 26,8%), por exemplo, tiveram suas vazões de operação aprovadas, processo que envolve seis Comitês de Bacias Hidrográficas do Ceará. A liberação de água beneficia, além do abastecimento humano, a agricultura de base.
Por Honório Barbosa
Fonte: Diário do Nordeste