Em pleno século XXI, o Brasil vivencia a sua catarse existencial como República, através de uma complexa tragicomédia, com enredo pautado no anacronismo medieval em contraponto com o imbecilismo pós-moderno das redes sociais de alta tecnologia. O resultado é histórico: não apenas por revelar a adubagem tardia dos traços de um infantilismo obscurantista na sociedade brasileira, mas também por expor a arquitetura sofisticada da delinquência nacional, que sabota a si mesma, com o intuito de matar o dragão inimigo, estuprar a mocinha, e roubar descaradamente o castelo.
A Baixa Idade Média brasileira tem de tudo o que a História registrou e mais alguma coisa próxima do realismo fantástico: peste, fome, guerra ideológica, trapalhadas trapaceiras, resistência e negação do humanismo, feudos políticos, bandidagem religiosa, legalismo canalha, dinastias financeiras, beligerância patética, e uma espetacular máquina do tempo psicossocial em que o futuro se passa no passado presente. Às vezes o governo brasileiro prepara as suas tropas para defender o Monte Castelo, outras é expulso do templo como vendilhão, noutras duvida que o homem foi à lua e que a terra é redonda, em diversas vezes patina no lodo seco da Guerra Fria em busca de um inimigo fantasma, e todas as vezes perde a noção básica de entender que a história é um carro alegre que atropela indiferente todo aquele que a negue.
Tudo começou assim: era uma vez, em um reino encantado, um presidente que foi eleito como ditador; para que os seus apoiadores clamassem por um golpe militar para defenderem a democracia; para que o símbolo maior de amor à pátria fosse uma camisa de um time de futebol; para que a reedição do AI-5 fosse convocada em defesa da liberdade de expressão; para que Deus fosse levado a pagode na personalização do demônio; para que Roberto Jefferson recebesse o título de patrono das tropas do centrão em combate à corrupção; para que a Constituição fosse rasgada em cumprimento da Constituição; para que as forças armadas e militares de todas as diversidades tomassem posse do poder, para ser transformados em milicianos e governarem na ausência do Estado e ser usados num possível golpe militar para tomarem posse do que já estão de posse, sendo que o líder é um ex-subalterno que foi expulso do exército por tramar um ato terrorista contra o próprio exército. Nem André Breton conseguiu ser tão surreal.
As Forças Armadas foram colocadas no poder para combater o inimigo em uma guerra ideológica. A caserna não sabe administrar nada que não seja exterminar um alvo. Mesmo que o comunismo seja a força motriz desse anacronismo e que ele seja um inimigo muito bem quisto para quem torturou e matou durante a Ditadura Militar, ele se tornou um problema crônico depois que virou fantasma. Em seu lugar apareceram a peste, a fome e o fanatismo religioso. Para quem teria um inimigo concreto, “revolucionário” e “subversivo”, sobraram a política, a economia, a saúde, a educação, o meio ambiente, além de todos os desafios que a pós modernidade estipula. A caserna não foi e nem jamais será preparada para isso. Até mesmo as coisas da alçada da segurança nacional se mostram distante da capacidade de gerenciamento dos militares: até hoje a marinha e a Agência Brasileira de Inteligência não sabem a origem do derramamento de petróleo que provocou o maior crime ambiental na costa brasileira, devastando e aniquilando recursos naturais.
Enquanto a pandemia vai exterminado os brasileiros e a dignidade nacional, o líder terrorista emplaca decretos e medidas provisórias que se dividem entre idiotas, genocidas e escapistas, como por exemplo: a eterna briga contra a “ideologia de gênero”; a inclusão de academias, salões de beleza e barbearias como serviços essências, como forma de quebrar o isolamento social, justamente no auge da pandemia, com quase mil mortes por dia no Brasil; e a última MP assinada por ele, que isenta de punição ele e qualquer agente público no combate ao vírus, já conhecida como a MP da consciência pesada. Não existe estratégia nenhuma no combate ao novo corona, muito menos qualquer atitude administrativa sobre nada. Ele é a caserna e a caserna é ele, despreparado e fora de combate. Na guerra que ele mesmo criou, ele foi a primeira baixa entre seus próprios moinhos. Além de levar o gado para o brejo e o resto do Brasil junto, ele tornou sua milícia militar uma prisioneira de guerra. Sem direito a uma continência, somente o direito de entrar para História, mais uma vez, pelo fundo das portas, abertas só para a antropofagia do golpe final.
Os depoimentos dos generais ministros Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) em defesa do líder que tentou explodir o próprio exército, resumem exatamente o que se tornaram as forças armadas: uma miliciana guarda pessoal do presidente desocupado. É muito rebaixamento para tanto militar de carreira. O pior resumo da postura imbecilóide da caserna é a cara de pau em defender o indefensável, é se contradizer afirmando que não disse, tentando provar que não existe bom entendedor para meia palavra, muito menos para palavra inteira. A caserna jamais cogitou que nesse roteiro seus generais da ativa fossem tão humilhados por uma lealdade ao maior traidor da pátria de todos os tempos. Brancaleone está assistindo essa comédia, enquanto espera o churrasco na Alvorada.
Por Marcos Leonel – Escritor e cidadão do mundo
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