O golpe já foi dado e ratificado. Não adianta espernear. A história de 2019 começa pelo fim, com a falência múltipla da constituição e o estertor da dignidade. A disponibilidade de grande parte da sociedade brasileira em escancarar de vez o seu racismo, o seu preconceito social, o seu ódio latente às diversidades, bem como a sua mórbida afinidade de manter o controle e eliminar a dissidência através da tortura, da pistolagem, da violência psicológica e social, também é história pura. Histórico, hoje, é a atitude descarada e o destemor miliciano. A estrutura macabra desse moralismo patriota se deve a operacionalidade do legalismo canalha e ao amém arquitetado no imbecilismo vulgar.
Apesar de alguns lampejos de civilidade e algumas ousadias intelectuais isoladas, que têm suas experiências existenciais compartilhadas por uma minoria, o Brasil ainda é uma republiqueta que patina no despotismo esclarecido, rumina a esperança bizarra da volta do messias, confessa parcialmente seus pecados sociais em liturgias sincréticas, ao mesmo tempo em que acredita de forma patética, na redenção do bestialismo através da meritocracia neoliberal. O golpismo está no inconsciente coletivo das elites, que venera as farras nos cabarés corporativos. O golpismo também se deita confortavelmente nas alcovas da senzala, através da recepção do populacho empoderado na ilusão coletiva de ser o povo escolhido de Deus, vítima em potencial do estelionato político que vende o pertencimento e a inclusão social, em suas formas piratas, garantidas pela eficiência bandida das milícias oficiais.
Sendo assim, o imbecilismo teocrático privatiza a cidadania e o nacionalismo moralista privatiza a fé. Essa é a plataforma de aparelhamento social que o neoliberalismo usa para fundar o reino da escravidão eterna. Quando os grandes conglomerados financeiros garantem a tomada do poder, usando a opressão legalista do Legislativo e do Judiciário ou a opressão armada das forças militares, como foi com o patife Temer e é com o fascista Bolsonaro, eles também garantem a pavimentação e a urbanização do poder, para que ele se torne a via mais fácil da roubalheira do dinheiro público e a consequente lavagem das imensas fortunas que operam os três poderes. O que eles exigem em troca é a proficiência total e irrestrita do bando em eliminar a dissidência culta e consciente, a oposição indigente e oportunista, bem como as vozes alternativas que protestam contra a violação dos direitos humanos, a violentação do meio ambiente, e a violência contra as minorias. Esse é o verdadeiro mecanismo de ascensão da extrema direita no mundo.
Quando a invenção do PSDB: Sérgio Moro, aceita o cargo de ministro da justiça, depois de uma vergonhosa barganha protagonizada nos esgotos do poder, ele não só confessa a instrumentalização política da vaza-jato, como decreta categoricamente a venalidade do Judiciário brasileiro. Quando Romero Jucá, uma celebridade decaída, afirma em gravação famosa a expressão histórica “…com o Supremo e com tudo…”, sem reação nenhuma do STF, ele não só confessa o golpe de Temer, da Globo, do PSDB e do Supremo, como decreta categoricamente a sua condição de cliente supremo do Judiciário brasileiro. Quando Sérgio Moro, enquanto ministro da Justiça, passeia em tanque de guerra, feito ditador farofeiro, e invoca a Lei de Segurança Nacional para aniquilar um porteiro que revelaria a ligação da família Bolsonaro com o assassinato de Marielle Franco; para enquadrar Lula por críticas ao governo Bolsonaro; para enquadrar os punks do “Facada Fest” por críticas ao presidente; sem incluir Adriano da Nóbrega, miliciano ligado diretamente à família Bolsonaro, na lista de criminosos mais procurados no Brasil, até ele ser queimado como arquivo, além de outras arbitrariedades absurdas; ele não só confessa o golpe de Bolsonaro, como decreta categoricamente o legalismo canalha que viabiliza as farras nos cabarés corporativos.
Vale ressaltar que o imbecilismo escravo é a base de toda manutenção do golpismo na história da sociedade brasileira. O imbecilismo é a maior façanha psicossocial do neoliberalismo no mundo todo. O imbecilismo foi criado em laboratórios da publicidade e do marketing, suas estratégias do criacionismo comportamental têm o maior respaldo econômico da história. Foram elaboradas para que o amém fosse a expressão máxima do primitivismo mental. Foram investidos bilhões para o aniquilamento de qualquer voz capaz de revelar o barbarismo moderno das grandes corporações. Sendo que o imbecilismo mais perigoso é o de grife, é o da autoridade social, aquele que exibe credenciais. Quando você acredita mesmo que o seu próximo é menos do que você, por ser negro, por ser mulher, por ser homossexual, por ser pobre, por ser nordestino, você apenas prova o quanto o imbecilismo foi bem arquitetado, o quanto que ele é um empreendimento vitorioso. Quando você defende isso e tenta desconversar a sua ligação direta com o nazismo e o fascismo, em nome de Deus e em defesa da família, você só consegue comprovar que a sua fé é miliciana. Amém!
Por Marcos Leonel – Escritor e cidadão do mundo
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