A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva partiu para o ataque contra a Operação Lava Jato. A ofensiva que usa as milhares de mensagens vazadas entre procuradores da força-tarefa e Sergio Moro vai além do objetivo de conseguir a anulação do julgamento de Lula nos processos capitaneados pelo ex-juiz. Os advogados do petista contrataram um investigador para fazer uma radiografia nas comunicações trocadas pelo Telegram entre membros da força-tarefa para tentar provar que o Ministério Público Federal (MPF) usou a estratégia “pesque e pague” para construir acusações, ou seja, fez uso sistemático de consultas clandestinas de dados sigilosos da Receita Federal “na hipótese de identificação de algo que pudesse interessar ao órgão acusador”. O dossiê da defesa de Lula ainda acusa a força-tarefa de agir ilegalmente ao compartilhar informações sigilosas com agências estrangeiras como FBI, Departamento de Justiça dos EUA (DOJ) e a embaixada norte-americana por meio de canais informais.
Várias dessas práticas já haviam sido adiantadas pela investigação Vaza Jato, liderada pelo The Intercept Brasil e dezenas de veículos de imprensa, incluindo o El País. Agora, a defesa, com acesso a parte do material apreendido pela Polícia Federal com hackers por autorização do Supremo Tribunal Federal, abre uma cartada decisiva: quer sistematizar e validar legalmente todo o conteúdo para desconstruir, uma a uma, as condenações e acusações contra Lula na Lava Jato, entre elas as que o deixaram inelegível em 2018. Se a estratégia tem chances de prosperar, isso começará a ser definido nesta terça-feira. A Segunda Turma do Supremo, onde votam os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Edson Fachin e Kássio Nunes Marques, vai decidir se mantém ou não a ordem monocrática (solitária) de Lewandowski que autorizou o compartilhamento do material com a defesa do ex-presidente. Além das mensagens, também foi compartilhada a íntegra do acordo de leniência entre a força-tarefa e a empreiteira Odebrecht.
A expectativa da defesa é que, uma vez chancelada pela Segunda Turma, as mensagens criem uma reação em cadeia que vai afetar não só o pedido de suspeição de Sergio Moro, pendente de julgamento no próprio STF, mas a ação do sítio de Atibaia, julgada pela magistrada Gabriela Hardt e que também condenou o petista. Os advogados do petista estão também particularmente interessados em minar a acusação do caso do Instituto Lula, pelo qual o ex-presidente foi denunciado em setembro de 2020. Parado na primeira instância, o caso está na origem dos pedidos da defesa para liberação do acesso às mensagens e também da leniência da construtora. Se a estratégia der certo, deve ser o primeiro desfecho a beneficiá-lo.
Pressionados pelos novos desdobramentos, membros e ex-participantes da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, como Deltan Dallagnol, enviaram ofícios nesta segunda-feira para o Supremo Tribunal de Justiça, à Procuradoria-Geral da República e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) alertando que a “divulgação dirigida das supostas mensagens” poderia justamente produzir anulações de condenações em cadeia, prejudicando o legado da operação “que permitiu a responsabilização de centenas de criminosos e a recuperação de bilhões de reais”.
Análise e plantas de Marisa na Ceagesp
Desde o começo de fevereiro, a equipe de defesa de Lula vem se debruçando diariamente na sede do Instituto Nacional de Criminalística (INC) sobre as mensagens apreendidas no âmbito da Operação Spoofing ―que investiga as invasões de contas do Telegram de autoridades brasileiras e de pessoas relacionadas à Lava Jato. O volume recebido inicialmente pela defesa é gigantesco, 1.297 documentos de HTML, entre trocas de mensagens individuais e chats de conversas, mas eles representam apenas uma fração do total apreendido pela Polícia Federal com os hackers que invadiram as contas dos membros do MPF. A estratégia da defesa é protocolar no STF, a cada nova descoberta considerada relevante, relatórios preliminares para que sejam incluídos nos autos e que depois serão consolidados em um documento final, a ser entregue após a análise exaustiva de todos os dados. Por enquanto, não há previsão de quando isso deve acontecer, até mesmo porque a defesa ainda luta para conseguir o restante dos arquivos.
A mais recente petição dirigida ao STF com uma nova seleção de diálogos feitos pelo perito Cláudio Wagner, da defesa do petista, destaca conversas que indicam a troca de documentos e comunicação extraoficial entre o MPF e órgãos internacionais, relativos ao acordo de leniência da Odebrecht, que foram sonegados à defesa. “Tais registros, por exemplo, tratam das supostas cópias dos sistemas da Odebrecht e da (quebra da) cadeia de custódia do material”, apontam os advogados na petição. Num dos trechos, de 31 de agosto de 2016, o procurador Paulo Roberto Galvão informa que pediu auxílio ao FBI para “quebrar” ou “indicar um hacker” capaz de acessar o sistema MyWebDay da Odebrecht. Esses trechos foram revelados por reportagem da Agência Pública com o The Intercept, em julho de 2020. A defesa destaca também o documento compartilhado pelo aplicativo Telegram entre o ex-procurador suíço Stefan Lenz e Deltan Dallagnol, de forma “clandestina” e “incompatível com o que prevê o acordo firmado entre Brasil e a Suíça para fins de cooperação em matéria penal”.
Em outro diálogo, que a defesa de Lula chama de “caçada ilegal” contra o ministro Gilmar Mendes, o mesmo que vai decidir nesta terça-feira sobre as mensagens, ilustra a estratégia de “pesque e pague” dos procuradores. Essa história foi revelada em agosto de 2019 por reportagem do El País em parceria com o The Intercept. A possibilidade de apurar dados a respeito de um ministro do Supremo “por acaso” é tratada com ironia. “Vai que tem um para o Gilmar…hehehe”, disse o procurador Roberson Pozzobon em mensagem de 19 de fevereiro de 2019, em referência aos cartões de um investigado Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, preso em Curitiba num desdobramento da Lava Jato e apontado como operador financeiro do PSDB. A aposta era que Mendes, que havia concedido dois habeas corpus em favor de Preto, aparecesse como beneficiário de contas e cartões que o operador mantinha na Suíça, um material que já estava sob escrutínio dos investigadores do país europeu.
O apelo às consultas clandestinas na Receita também aparece em fevereiro de 2016, quando os procuradores falam em usar um contato no órgão público para investigar compras de Marisa Letícia, então mulher de Lula, nas investigações do caso Sítio de Atibaia ―nesta ação, o ex-presidente foi condenado por receber propina de construtoras, que teriam reformado e decorado o sítio no interior de São Paulo de uso da família, o que o petista nega. “Dona Marisa comprou árvores e plantas no Ceagesp em dinheiro para o sítio com um cara chamado Nelson Suzanese BOX 5 ou BOX 9. Pedi para o Leonel ver ser tem nf”, solicita o procurador Januário Paludo, decano da força-tarefa de procuradores.
O Leonel citado pelo procurador Paludo é uma referência a Roberto Leonel, que era auditor da Receita Federal e foi indicado pelo então ministro da Justiça Sergio Moro para a presidência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) em janeiro de 2019. Leonel deixou o cargo e se aposentou após o órgão ser transferido para o Ministério da Economia, em setembro de 2019.
Curiosamente, em meio à toda a ofensiva, a defesa de Lula ainda não protocolou uma petição ao STF para que essas mesmas mensagens sejam incluídas nos autos do Habeas Corpus que pede a suspeição de Moro, um julgamento que o ministro Gilmar Mendes promete colocar de volta em pauta ainda neste semestre. Juristas ouvidos por este jornal afirmam que, como o pedido de suspeição foi feito antes que as primeiras mensagens da Vaza Jato fossem divulgadas, logo após Moro assumir como ministro de Bolsonaro, mesmo com o julgamento em andamento, ainda é possível que a defesa peça a inclusão das novas provas. E isso deve depender da decisão do Supremo desta terça-feira.
Fonte: El País