“O repente que é minha arte, que é algo medieval, teve o reconhecimento como algo cultural, dizendo com alegria que agora a cantoria, é algo nacional”. Foi cantando esses versos improvisados que o repentista Cícero da Silva, morador da cidade do Crato, comemorou o reconhecimento do repente como patrimônio cultural do Brasil.
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O registro do bem foi aprovado por unanimidade pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) durante a 98ª reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural realizada nesta quinta-feira (11).
Para Cícero da Silva, que desde os 13 anos se dedica a criar e cantar os versos, o dia é considerado histórico para a cultura nordestina. Ele espera que o reconhecimento se traduza em uma valorização muito maior para os cantadores.
“Embora já sejamos profissionais, esse reconhecimento nacional vai dar uma valorização muito maior. Antes, o repentista era visto como um desocupado, que cantava nas ruas para ganhar uns trocados. Hoje é reconhecido como poeta, é algo divino. Isso é um sinal de que arte da poesia nunca vai acabar. Ela será eterna”, afirma.
Aos 26 anos, Cícero, que é bacharel em filosofia, se tornou seminarista da Diocese do Crato. Ele está cursando o 3º ano da faculdade de teologia e se tornará padre daqui a cerca de dois anos. Mesmo prestes a receber a ordenação, ele não abandonou o repente e nem pretende.
“Aqui na diocese faço repente para receber as autoridades eclesiásticas e civis que nos visitam. Além disso, sou convidado muitas vezes para fazer participações em romarias, como a de Juazeiro do Norte, que aconteceu agora no início de novembro”.
“O repentista já nasce repentista. Não se ensina nem se aprende é um dom é uma vocação que não se perde”, completa Cícero.
Rima improvisada
O repente consiste numa rima cantada de forma improvisada, na maioria das vezes por duas pessoas. Quando é feita apenas por um cantador, ela passa a se chamar balaio. Nesse caso, os versos são decorados, levados prontos para a apresentação. O principal instrumento é a viola.
“O mundo da cantoria tem mais de 100 estilos. Eu, por exemplo, uso a sextilha, que são seis versos. Cada verso com sete sílabas em que a sílaba 2 rima com a 4 e a 4 rima com a 6. Quando a gente canta em dupla o povo gosta de desafio. Um desafia o outro para que complete os versos que o outro começou”, explica Cícero
Arte milenar
De acordo com o presidente da Associação dos Cantadores do Ceará, Geraldo Amâncio, a cantoria é uma arte milenar e suas ocorrências mais antigas em âmbito nacional têm origem na Serra do Teixeira, na Paraíba, há cerca de 170 anos.
“O repente em si é milenar. Ele nasceu nos califados árabes há milhares de anos e depois é que aparece no Brasil na região da Serra do Teixeira, na Paraíba há 170 anos. Aqui no Ceará tivemos o mais famoso repentista, Cego Aderaldo. É um honra agora receber esse reconhecimento nacional”, diz.
Geraldo espera que o registro se traduza em mais espaço e oportunidades para os cantadores, que, segundo ele, são em torno de 4 a 5 mil espalhados pelo Nordeste. Destes, apenas cerca de 30 ou até menos conseguem manter uma agenda de apresentações, calcula Geraldo.
“É uma felicidade muito grande. Considero que é também um passo importante para que os cantadores, cordelistas e repentistas sejam reconhecidos como artistas”, conclui.
Patrimônio cultural
O pedido de registro do Repente foi formalizado no ano de 2013 pela Associação dos Cantadores Repentistas e Escritores Populares do DF e Entorno.
Desde então, o Iphan, autarquia federal vinculada à Secretaria Especial da Cultura e ao Ministério do Turismo, iniciou o processo de registro, que inclui a descrição detalhada do Repente, reunião de documentação relacionada e registro audiovisual, que culminam no dossiê de registro, produzido em parceria com o Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB). Durante a reunião do Conselho Consultivo, os 22 conselheiros aprovaram à unanimidade o registro do Repente.
“Repente é poesia. Cantada e improvisada. Em linhas gerais, é um diálogo poético em que dois repentistas se alternam cantando estrofes criadas naquele instante ao passo em que se acompanham com toques de violas”, define o dossiê de registro do bem, que listou mais de 200 contatos entre repentistas, associações e apologistas – público especial com grande familiaridade junto à cultura do Repente.
“Numa apresentação de repente, a poesia flui em resposta aos estímulos e demandas dos ouvintes e às ideias e desafios que um poeta lança para o outro. As estrofes seguem regras bastante complexas e rígidas de rima, métrica e coerência temática, e, diante disso, fascinam pela naturalidade com que são feitas.”
Fonte: g1 CE