“Se queres prever o futuro, estuda o passado.”
Confúcio
Em meados do Século XIX, alastrou-se, mundo afora, vinda do Oriente, uma pandemia de Cólera. À época, moléstia de etiologia desconhecida, trazendo enorme mortandade, imputava-se sua eclosão a um castigo divino. Os tratamentos centravam-se em rezas, promessas, autoflagelações e incontáveis meizinhas populares, todos eles de resultados inócuos. No Cariri, a peste bateu às nossas portas no início de 1862. O presidente da província arregimentou uma plêiade de médicos para virem à região que, naqueles idos, não tinha um sequer que aqui residisse. Entre eles, um aracatiense, o nosso maior benfeitor: Dr. Antonio Manoel de Medeiros, hoje totalmente esquecido. Quando o Cólera resolveu partir, no finalzinho de setembro daquele 1862, tinha deixado seu rastro funéreo e ceifado a vida de mais de 2.500 caririenses. Só no Crato pereceram, oficialmente, 900 almas, numa cidade que possuía, ao tempo, uns 3500 habitantes. Guardadas as proporções, seria como se hoje, na atual pandemia de Covid-19, aqui fossem dizimados 32.000 cratenses.
Como em quase todo surto epidêmico, estabeleceu-se o terror, o pânico e o salve-se quem puder. Os médicos convocados para o combate tiveram que, heroicamente, lutar com as unhas e os dentes. Em Crato, Dr. Medeiros fez um pequeno Hospital na Rua das Laranjeiras que, infelizmente, não logrou êxito. Abriu ainda uma enfermaria na cadeia municipal, mas a mortandade era tanta que a população associou-os, imediatamente, a um abatedouro e preferiu esperar a velha da foiçona em casa mesmo. Dr. Medeiros criou aqui, uma Comissão Sanitária, heroica e corajosa, para ajudar no combate ao inimigo feroz. Entre eles, o boticário Secundo Chaves; o fundador do primeiro jornal do interior do Ceará, aqui no Crato, João Brígido, e o juiz Francisco Sette. Trabalharam, diuturnamente, visitando sítios e logradouros recônditos, na tentativa de trazer algum tratamento e conforto à população. Reclamou-se, durante todo tempo, da falta de apoio governamental, principalmente no que tange ao fornecimento de medicamentos, sempre em falta. A população, atônita, aguardou a chacina em casa, ajudaram-se mutuamente, colheram donativos e, aparentemente, a fome ao menos foi aplacada. Os mais ricos fugiram para as fazendas ou outras localidades, ajudando na disseminação da doença. Enterros se sucediam. Pais abandonavam filhos doentes e vice-versa. Cadáveres, como em Santana, ficavam nas ruas, insepultos, para o repasto dos cães. Muitos moribundos, no afã da epidemia, teriam sido enterrados ainda vivos. Prisioneiros foram dispensados das penas para trabalharem como coveiros. Criou-se um cemitério específico do Cólera, defronte ao hoje restaurante Algo Mais. Alguns padres como o Lima Seca e Silva Souza escafederam-se, como por encanto, bem como o delegado Francisco Pontes Simões, Manoel de Lavor (Fiscal da Câmara) e Miguel Xavier (Presidente da Câmara). Os padres Manoel Aires e João Marrocos Teles deram um corajoso amparo espiritual aos moribundos, inclusive tendo o Padre Marrocos sido contaminado e vindo a falecer do Cólera, junto com o irmão, pai do Pe. Cícero. João Brígido e o juiz Sette também foram acometidos da doença, mas escaparam.
Houve tensões ainda com o município de Exu que fechou suas fronteiras numa espécie de lockdown e viu-se livre da epidemia. Escolas e comércio fecharam suas portas, muitas vezes definitivamente.
Quase cento e sessenta anos depois, o Cariri se vê, novamente, diante de uma pandemia. O conhecimento científico que temos hoje é incomparável, numa cidade que cresceu mais de 3500%. Hospitais estruturados , enfermeiros , médicos e técnicos não nos faltam. A praga já está às nossas portas e basta observar cidades como Fortaleza e Manaus para entender que o cenário do triunfo da morte, não mudou muito. Por que ainda não se tem como dar toda a cobertura assistencial possível à população, nos tempos de hoje? Por que mortes em casa, cadáveres insepultos por muitos dias, falta de respiradores e leitos de UTI? A elite cobrando retorno ao trabalho em troca da vida de trabalhadores? Talvez porque, na nossa história, mudam os cenários, mas nunca a essência dos atores. A desigualdade social continua gritante (temos medalha de prata mundial na modalidade); os CNPJ´s continuam sendo mais importantes que os CPF´s; a estrutura sanitária do país permanece digna do Século XIX; a ganância dos homens faz com que coloquem a economia como bem maior que a vida. E mais, reclamava-se do presidente da província do Ceará, Dr. José Bento da Cunha, à época. Teria sido negligente em fornecer os medicamentos e na ajuda aos necessitados que, no geral, relegava-se à responsabilidade dos mais abastados e que deviam fazer vaquinhas e cotas. Cento e sessenta anos depois, sentiríamos saudade do Dr. Bento, hoje, quando temos um governo eleito, totalmente insensível ao extermínio da população. Estados e municípios virem-se como puderem. Não existe esfera federal, só celestial: Deus acima de todos! Acabar com a pobreza no país? É mais fácil acabar com os pobres.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri