Havia anos não se viam, mas quis o destino que voltassem a se encontrar naquela circunstância triste de despedida de uma amiga falecida. Os dois amigos punham as novidades em dia. Um, depois de certa idade resolvera casar e constituir família. O outro já estava no segundo casamento, no quarto filho. Este, pergunta pelo pai do velho amigo, trazia na lembrança, ainda que vaga, a consciência de que ele perdera a mãe ainda em tenra idade. — Papai morreu há 13 anos, rapaz! — Infelizmente, circunstância trágica.
E seguiu a narrativa: — Papai era agricultor e ainda mantinha o velho costume da broca. Esse povo velho daqui ainda pratica essa cultura. Naquele dia acordou cedo para queimar a sua. No dia anterior já havia feito os aceiros, amontoado o mato seco em coivaras, tudo como instrui o ICMBio. Realizou certo e no fim da manhã veio pra casa para o almoço. Falou-nos que tinha ficado perfeita. A terra era boa, e embora o terreno fosse pequeno, apenas duas tarefas, daria um bom legume. Já era quase uma hora da tarde, quando o pessoal da brigada de incêndio chegou e avisou que tinham detectado fogo subindo a serra naquela região. Perguntaram se o meu pai sabia de alguma broca, ao que ele afirmou que sim. Era ele quem tinha feito uma mas estava tudo certo e o fogo não havia passado para a mata, inclusive já estava concluída. Os brigadistas mostraram as imagens de satélite pelo celular, meu pai reconheceu a paisagem e indicou o caminho aos brigadistas. O pessoal subiu e comprovou o que meu pai falara, exceto por um longo tronco de macaubeira que tinha metade de sua medida no terreno da roça e metade no início da mata. Meu pai não percebeu que ainda havia fumaça no tronco e ai, meu amigo, todos sabemos do ditado “onde há fumaça…”
Preocupado, o velho foi em seguida na intenção de ajudar e foi pelo lado contrário ao que os brigadistas estavam, nenhum deles o viu. Enfim, as chamas foram controladas e apagadas, eles desceram e quando perguntados por meu pai, disseram que não o tinham visto. De início ninguém se preocupou, mas a medida que o tempo foi passando, sentimos certo receio e fomos procurá-lo, nada. Cogitei que deveria ter dado uma volta pelo pé de serra, era hábito dele, deveria estar envergonhado. Aguardamos e ele não voltou. Já era quase noite quando bateu um certo desespero e saímos mata a dentro. Talvez a ideia de quase ter causado um grande incêndio poderia ter abalado. Nem sinal dele. Era alta noite quando retornamos, ninguém dormiu. Já era quase manhã quando um sobrinho dele resolveu ir até a parte onde a mata iniciara o fogo, de longe viu a chinela, correu e em seguida avistou o meu velho caído numa pequena barranca com queimaduras em boa parte do corpo.
O interlocutor, perguntou se eles tinham consciência de que o pai não havia sido morto propriamente pelo fogo. Talvez a ideia de ter sido morto queimado fosse um tanto cruel. O amigo respondeu que sim, inclusive o laudo do IML deva como causa mal súbito. Quem sabe o medo, o desespero ante as chamas tenham desencadeado isso. Foi tudo muito triste, falou ele.
Os dois prosseguiram na conversa e o visitante indagara sobre seu irmão carteiro que há pouco mais de duas décadas sofrera um grave acidente, fora inclusive desenganado pelos médicos. — Meu irmão tá bem! Gosta de ler, escrever. — Publica o que escreve? Perguntou o visitante. — Não, ele não usa redes sociais. É apenas uma prática para se sentir útil. E começou a falar da época do acidente. O irmão passara quase um mês na UTI daquele hospital e os médicos só falavam que se completasse um mês e não houvesse reação, desligar os aparelhos seria a decisão correta. Ao fim do vigésimo nono dia, chegando ao hospital, o chefe da equipe médica me procura e diz que meu irmão ia sair da UTI. — Ainda ontem o senhor repetiu que não tinha mais jeito! E o médico: — Pois é, ele reagiu e inclusive está interagindo. O que preocupa são as escaras nas costas e nádegas, estão muito profundas e ficando aqui, mesmo com os cuidados, poderá haver infecção e ai seu irmão poderá não resistir. O jovem não sabia se ficava feliz ou triste, se levaria o irmão e assumiria o risco do cuidado em casa ou deixaria na responsabilidade do hospital, se o médico estava querendo se livrar do seu irmão ou falando a verdade. Era uma turbulência de sensações. Ao ligar para o pai, a autorização pelo chefe da família foi dada. Cuidariam do rapaz em casa. O médico indicara a forma de assepsia, basicamente limpar os ferimentos, dali há uns cinco, seis meses, em sendo tudo feito corretamente, ele estaria melhor. Assim foi feito. Mas havia o problema da alimentação via sonda, que poderia entupir, o que ocorreu três vezes, nas duas primeiras conseguiram fazer a desobstrução em casa, mas da terceira vez foi obrigado a voltar ao hospital, o que era muito temido dado o risco de contrair uma infecção.
Foi na saída do hospital após o procedimento que uma senhora sentada à entrada do hospital, parecia invisível a todos, pequena, magrinha, vestia um branco reluzente. Aparentemente frágil mas com um voz clara e terna perguntou: — São feridas em seu irmão? Vou te ensinar um tratamento muito bom! Ela indicou passar diariamente polpa de mamão bem maduro com açúcar por sobre os ferimentos. O rapaz riu, não acreditava em que aquilo seria sério. Chegando em casa contou ao pai que novamente autorizou. Era um fervoroso e adepto da medicina popular, e ainda que não conhece a mezinha, ordenou que o filho aplicasse. E assim foi feito. Ao fim de um mês, o que o médico previra seis meses, já tinha ocorrido. As feridas estavam saradas e percebia-se uma alegria na cara de meu irmão.
Estava concluindo a história quando se aproxima um homem com uma menininha de aproximadamente um ano em seus braços. Era um amigo em comum. Que casado há 15 anos não conseguira que a esposa engravidasse. Fizera todo tipo de tratamento, fora em vários especialistas. Todos eram unânimes: impossível! Dada a quantidade significativa de policistos em sua esposa, além de um mioma de tamanho considerável. Eles já estavam conformados, inclusive já pensavam em uma adoção, até que veio a tão sonhada gravidez. Era aquela pequena que ele trazia nos braços.
O amigo em visita, olha para o outro e pergunta de supetão: — Brother, você acredita em milagre? Ao que o amigo com um olhar aguado e um sorriso no semblante diz: — Mas homem, olha essa menina! Lembra da mulher da mezinha? Ela disse que se precisasse de mais alguma informação pra meu irmão poderia voltar, ela todo dia estava no hospital. Eu voltei várias vezes, ninguém nunca a viu por lá. Acredito demais!
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, flamenguista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri