Eu era criança e passava boas horas do meu dia naquela tela com paisagem bucólica e uma casinha simples de sapê cercada de árvores onde um rio passava no terreiro. Dali só saía quando mamãe me chamava para fazer algum mandado. Naquele tempo, meu irmão mais velho já morava na casa de vovó Doroteia, e às vezes me levava aos lugares reais que eu sonhava ir. Foi ele que me levou pela primeira vez ao estádio. Fomos ver o jogo do Vasco Cratense, que naquele tempo tinha um poderoso elenco genuinamente do Alto da penha; o jogo foi contra a Portuguesa de Cazé, historicamente o grande rival do cruzmaltino do Morro. Antes na preliminar, o escrete do São Paulo de Cristove enfrentou o extinto áureo e negro, Belga. Foi meu primeiro alumbramento no futebol e desde então o sonho de ser jogador de futebol teve sua semente lançada em meu coração. Devo isso a César, meu irmão mais velho.
Ainda muito menino lembro minha mãe saindo para trabalhar na casa de vovó. Lá ela tinha uma máquina e fazia roupas por encomenda. Ainda hoje mamãe costura. Na ausência de mamãe, minha irmã mais velha, Selma, que a chamo irmãe, era ela que fazia o papel de nossa mãe, eu e meus dois irmãos menores ficávamos sob sua tutela. Selma não era de brincadeira, impunha-nos uma disciplina que se desafiada éramos punidos com chinelas. Nunca fomos rebeldes, de maneira que nem lembro ao certo quantas vezes tenha precisado usar desse recurso, mas sei que usou. Na minha adolescência eu era seu contínuo. Selma também se tornara costureira e vendia confecções, eu fazia às vezes de cobrador, e sempre que era preciso ia ao armarinho ou à Caixa Econômica fazer seus depósitos. Muito aprendi naquela época, e muito se estreitaram os laços entre a gente. Foi ela com todo zelo e profissionalismo que fez minha roupa do ABC e a roupa da formatura do primeiro grau. Nunca me vesti tão bem.
Éramos cabinhas, e fomos criados sob um regime rígido, respeito acima de tudo, obediência aos pais e aos mais velhos. Ainda pré adolescentes, seguíamos nosso pai em suas jornadas que iam desde a broca passando pelo plantio e limpa até a colheita. Durante esse período minha grande referência era Deca, o terceiro dos meus irmãos. Seu bom humor contrastava com certa revolta pela falta de emprego que o obrigava a ir à roça. Papai não concebia ou permitia o ócio entre os filhos. Quando não era a roça, era os serviços de construção civil. Mas, era na lida da roça, naquela rotina sofrida sob o sol escaldante, quando da broca e depois sob os dias da quadra chuvosa que tínhamos o melhor de Deca. Não se falava em consciência ambiental, e ela empunhava habilmente uma baladeira e saia à caça de rolinhas. “Do peito pra cima” era o que dizia. E não havia saídas à mata em que voltasse de mãos vazias. Era engraçada a maneira como ele contava as histórias e inesquecível sua versão da música “Flores”, dos Titãs. Deca, um dos melhores seres humanos que já conheci.
Papai não admitia que seus filhos chegassem em casa com nada que não fosse comprado ou dado por alguém que ele conhecesse. E Carlinhos, meu quarto irmão, era um aventureiro da natureza e nela buscava as suas ofertas, cajus, mangas, macaúbas, azeitonas oliveiras, cajás, etc. Papai sempre perguntava onde ele tinha encontrado. “No rio, na mata, na roça” respondia. A condição emocional de nosso pai era instável, durante anos, fez uso de medicação de uso controlado, havia umas mudanças de humor esporádicas que só mais tarde viemos compreender que eram acentuadas pela preocupação advinda do desemprego dele e dos filhos, foram anos difíceis. Carlinhos era o craque da família, muito habilidoso, foi minha referência no futebol desde os tempos que jogávamos no campinho do barreirão.
A minha outra irmã, Cecilia, também ajudou em nossa criação. Creio em que seja a pessoa mais passional de todos nós. Embora às vezes destile certa melancolia em suas falas, desde sempre, em seu olhar e atitudes emana um grande amor pelos irmãos, por mamãe e pelos amigos, mais e especialmente pelos sobrinhos. A estes só sendo superado pelo amor aos filhos. Brigávamos muito quando adolescentes, porque muito cedo ela, por conta e risco, assumiu uma preocupação comigo e Cicim, que nem mamãe tinha. Sou-lhe grato porque reconheço que tudo que me fez, mesmo quando a considerei chata, sei que fez por amor a mim. Já adultos, talvez numa forma de sanar quaisquer dúvidas sobre sentimentos do passado, reciprocamente oferecemos nossas filhas para sermos padrinhos e madrinha.
A adolescência é tempo de instabilidade, e foi nesta época que tive a melhor companhia nos jogos de futebol. Meu irmão Cicero gostava de me acompanhar aos jogos de futebol, inicialmente pelos campinhos nos bairros vizinhos, nessa época era nosso goleiro. Depois nos jogos do Vasco, vez em quando dizia que gostava de meu futebol e fazia vezes de meu segurança ante qualquer ameaça dentro de campo. Tornou-se meu melhor amigo durante muito tempo. Quando foi embora às terras do eixo, onde já estavam os três mais velhos, só foi porque eu o denunciei a papai de suas aventuras. No dia em que entrou no ônibus, pedi-lhe perdão aos prantos e aquele perdão fácil pesou na minha consciência. Somente dez anos depois entendi que havida sido a coisa certa, porque ele me disse que estava muito feliz. E isso me fez muito bem.
Somos nove filhos, eu sou o sétimo, e divido minha vida com eles em duas fases, a primeira me coloca num plano de contemplação e inocência pueris. São lembranças de um tempo feliz embora difícil, matéria-prima para nossas piadas internas familiares, saudade, risos, gratidão, e resume-se em meus irmãos e irmãs mais velhos e essa separação física necessária, mas que não existe em nossos corações. A outra ainda está acontecendo e é algo que ainda está sendo contado nos dias que ocorrem, fala de uma liderança falha, de um irmão mais velho que ensinou pelo não, “não façam como eu faço”, que ensinou pela paixão e afeto as coisas importantes da vida, que ensinou pelo sofrimento. Mas que, especialmente ainda procura aprender com os mais novos lições que deveria ensinar.
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri