Despertador. Rosto inchado, olhos semicerrados. Primeiro gesto: deslizar o dedo no telefone. Instagram. TikTok. YouTube. Uma avalanche de estímulos, cores, sons e ideias — nenhuma minha, mas todas cuidadosamente selecionadas para parecer que são. E então me pergunto: quem é esse “eu” que o algoritmo desenhou? E, mais fundo ainda: quem sou eu sem ele?
Há uma parte da mente humana que adora o automatismo. O cérebro, preguiçoso por natureza, delega decisões sempre que pode. Deixar o algoritmo decidir o que assistir, o que comer, o que vestir, com quem falar, é quase uma dádiva. Uma simulação de escolha sem o peso da dúvida. Mas o conforto cobra um preço: a erosão silenciosa do autoconhecimento.
Afinal, nossos desejos já não brotam mais da experiência bruta, mas da retroalimentação entre o que clicamos e o que nos oferecem. Queremos o que já quisemos. Gostamos do que fomos treinados a gostar. A mente, viciada em dopamina rápida, grita por recompensas que confirmem nossas bolhas. E assim, nossa identidade vai se estreitando — como a timeline.
Não é exagero dizer que terceirizamos partes da psique. Nossa memória? A nuvem armazena. Nossa intuição? Recalculada pelo Waze. Nossas emoções? Convertidas em reações, emojis, stories de 15 segundos. Tudo o que sentimos vira dado. Tudo o que somos, vira perfil. O inconsciente já não sonha sozinho — ele é rastreado, modelado, monetizado.
E sem os algoritmos? Vem o desconforto. O branco da escolha. A angústia de não saber o que fazer com o tempo livre que antes era engolido por rolagens infinitas. A inquietação de sentar no silêncio, sem um vídeo de fundo, sem trilha sonora recomendada. O que resta é o “eu cru” — ansioso, fragmentado, esquecido. Um “eu” que dá trabalho.
A tecnologia moldou não apenas nossos hábitos, mas nossas expectativas emocionais. Esperamos que tudo seja rápido, personalizado, eficiente. Até o amor. Até a espiritualidade. E esquecemos que a alma não é um código. É um labirinto. E labirintos não têm botão de “pular introdução”.
Talvez o maior risco não seja sermos manipulados — mas nos esquecermos de como pensar sem sugestões. Como sentir sem filtros. Como desejar sem vitrines. A mente humana precisa de silêncio, de erro, de espera. Mas os algoritmos têm pressa. E nós os obedecemos, felizes por não precisar mais perguntar “quem sou eu?”.
Mas um dia, o sistema falha. O wi-fi cai. A conta trava. A inteligência artificial erra. E nesse pequeno colapso, há um eco. Um sussurro: Quem é você quando ninguém está observando? Quando não há curtidas, nem comentários, nem tendências?
Essa pergunta não tem resposta instantânea. Talvez nunca tenha. Mas é aí, na falha do algoritmo, que talvez comece o que chamamos de liberdade.
Por Mirta Lourenço. Médica, professora, cronista e poetisa
*Este artigo é de inteira responsabilidade da autora, e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri