Helenita era moça moderna e sonhava alto. Queria quebrar aquele carma da família de que todas daquela rama nasceram para amantes. Ele não, dizia às amigas.
Aos quinze anos namorou um motoboy, cara decente, tudo direito. As más-línguas entraram em ação e na mente do rapaz. “Saia daí que ai não é lugar pra você!” e o pobre motoboy sem entender nada. Mas foram tantas as investidas que um dia, sobrou numa curva e passou desta para a melhor. Foi praga! Dizia a avó de Helenita! Era um moço tão bom, falava em casar! Dizia a mãe da jovem.
Aliás, não culpavam tanto a bisavó de Helenita pelo carma. A pobre mulher até chegou a casar, mas enviuvou antes mesmo da núpcias. Naquele tempo, desamparada, teve que partir pra luta e como não tinha nenhuma arte, habilitou-se mais facilmente na arte de Agnés Sorel, e como era bonita que naquela família todas eram, não foi muito difícil. Chegou a possuir uma das casas mais sofisticadas da sua rua, presente de um famoso coronel da região. Eram ainda os tempos dos coronéis. Até que grávida, foi abandonada e já trintona, desfez-se da casa e resolveu criar a filha em outra freguesia na qual os amantes era sazonais e menos atraentes financeiramente. Criou a filha Cassandra em berço, não digamos de ouro, mas chegou a estudar em colégio particular. As coisas foram arruinando e quase cinquentona, os amantes rarearam e terminou a criação com o que conseguia de uma pequena bodega que tinha em casa.
Cassandra, meu Deus, teve tudo do bom e do melhor, dizia a mãe. Deu valor? Deu foi outra coisa. O que tinha de bonita, tinha de burra. Eu não tive escolha. Pouco estudo, muito nova, viúva. Foi o jeito. Mas ela? Até em escola de rico estudou. E pra quê? Pra virar amante de sem futuro? Pelo menos casasse com um pobre que fosse.
Cassandra achou de se envolver com homem casado ainda adolescente. Era o pai de uma colega do Colégio onde fizera o segundo grau. Já não era um colégio particular, mas na cidade era o melhor público. Tem até doutor hoje em dia que estudou por lá. Pois bem Cassandra era muito bonita e foi seduzida pelo pai da colega. Caiu no bico do povo e dali para o julgamento social. Nunca arrumou um namorado sério porque diziam à boca grande que ela ainda mantinha um caso com o homem que lhe desonrara. Era uma perdida. Com o passar do tempo, vieram os filhos. Foram quatro, o primeiro o pai levou embora para outra cidade. O segundo, um pedreiro sustentou durante dez anos até descobrir que era de um policial que na época tinha sido destacado na cidade. O terceiro e a quarta, eram filhos de um paraibano caixeiro viajante que a cada quatro meses visitava a cidade para as vendas. Essa menina é que é a mãe de Helenita.
Chamava-se Lorena, por alcunha Lola, mulher de beleza rara. Quem a conheceu na época afirma que devido ao histórico familiar, ela era o terror das famílias. Pobre Lola, teve seu destino determinado pelo ódio que carregava em seu coração. Estudou no mesmo colégio em que a mãe terminara o segundo grau. Por lá conheceu vários rapazes promissores, namorou uns quatro. Contudo, logo surgiam aquelas conversas que os afugentava. Lola resistiu muito, concluiu o segundo grau, tentou vestibular na única faculdade da cidade, mas como era muito concorrido, não logrou êxito. Ela seguiu sua luta, tentando se desviar daquela sina de que todos a esta altura já sabem. Foi trabalhar no comércio, naquele tempo trabalhar no comércio era uma coisona. Era uma loja de calçados, lá se destacou entre as vendedoras, se comunicava bem, era simpática, bonita e principalmente muito bem feita com aquele seu corpo modelado pela natureza que ela nunca entrou numa academia. Aliás nem havia ainda naquela cidade. Por todos os seus atributos as colegas de trabalho a chamavam de exibida, ou, aquela outrazinha, mas era inveja.
No terceiro ano trabalhando naquela loja, o gerente achou de ir ao depósito onde a jovem Lola pegava uns tênis para mostrar a um cliente. Ela estava em cima de uma escada e a visão privilegiada em que o gerente a viu foi responsável pela paixão arrebatadora. “Se fosse hoje era assédio!” Diz ela às amigas com um riso na cara tomando um copo de cerveja. E Helenita emenda: “Mãe, foi assédio naquele tempo, e é assédio hoje!”. Mas é diferente, Lenita! O que se sabe é que depois da ocasião, sempre que Lola se dirigia ao depósito, o gerente ia até ela com os pretextos mais descabidos. Ele a cercava em todas as ocasiões na tentativa de seduzi-la. Ela pensou em sair da loja, mas precisava do emprego. Depois de toda investida sem sucesso, a solução encontrada pelo gerente para a consecução de seu objetivo foi oferecer um aumento a Lola. Ela passaria a ganhar salário mais comissão. Ninguém ali recebia isso. Então ela ficou.
Passou-se mais algum tempo, e o gerente prometeu alugar um apartamento pra ela. Lola relutou. Embriagado pela paixão e pelo desejo o golpe fatal: ameaçou demiti-la! Lola chorou, esperneou, e resistente, disse não. O gerente deu-lhe a noite para pensar. Naquele fim de tarde avermelhado, a jovem foi para casa desolada. Passava ela de frente a um bar já no início da rua onde morava, lugar onde os homens da comunidade, a maioria casados, gostavam de tomar umas e outras ao fim da jornada diária de trabalho. Em meio aos fiu-fius, um fala em voz mais alta, como se quisesse que Lola ouvisse: “o gerente da loja com certeza tá pegando!”. Aquelas palavras entraram coração a dentro e naquela noite ela não dormiu.
No dia seguinte, chegando à loja, dirigiu-se ao escritório onde estava o gerente e disse que tinha a resposta e uma proposta. Em cinco dias Lola se mudara para um bom apartamento todo mobiliado próximo ao centro da cidade. Passou a visitar a mãe e os irmãos nos fins de semana. E dizia que estava aguardando o namorado se divorciar para agilizar as coisas do casamento. Durou exatos dois anos. Nem divórcio, nem casamento, o gerente pediu transferência para a matriz da capital, sujeitou-se ao retrocesso da subgerência e foi embora com a esposa e os dois filhos pequenos. Deixou Lola no apartamento com dois meses pagos, e dois meses de gravidez.
Ao fim dos dois meses, Lola, que teve seu salário na loja novamente retornado só as comissões, vendeu alguns móveis, levou os outros à casa de sua mãe, onde voltou a morar. Desse relacionamento nasceu Helenita. A menina foi bem criada, os tios ajudavam, a avó e Lola se matava. Aquela sina da família deveria ter seu termo com Helenita.
E foi o que aconteceu, não exatamente como sonharam todos. Depois de terminar o ensino médio, Helenita passou no vestibular, foi cursar Pedagogia, seria professora. Nesse percurso, alguns namorados, mas a nenhum se apegou. Era linda, concentrava num só ser a formosura de três gerações de mulheres bonitas. Some-se a isso a inteligência emocional. Helenita tinha pensamentos progressistas, seria primeira da família a ingressar numa faculdade e se formar. Mas o amor, ah, o amor. Tinha tudo para ser um happy end mas isso não é romance do século XIX, o tempo é moderno, algumas coisas mudaram, outras não. Helenita se apaixonou por Acássio, que era casado há 17 anos com uma médica, mulher inteligente e religiosa, 16 anos mais velha que ele, três filhos adolescentes, estabilidade financeira. Uma bela família aos olhos do povo.
O sentimento foi recíproco e antes mesmo de Helenita terminar o primeiro período da faculdade, os dois já iniciaram um romance. De início quase ninguém percebeu. Mas à medida que Acássio se aproximava da família de Helenita, tudo foi ficando muito às claras. Os comentários começaram a surgir, afinal a doutora Lucimária Costa era nascida e criada naquela comunidade, inclusive era amiga de infância de Lola. Conversas de bastidores dão conta de que houve reunião entre Cassandra, já idosa, Lola, Acássio, a doutora e uma sua tia. Não se sabe bem o que conversaram, mas em poucos dias, a família do Acássio mudou-se para uma cidade vizinha, e aos poucos ele foi se afastando. É o que disseram. Helenita em pouco tempo, arrumou um namorado e foi morar com ele, jurou-lhe amor eterno e cumpriu por longos oito meses. Por esta época, Acássio não mais quis se enganar, o casamento havia acabado. Resolveu voltar à sua cidade, reapareceu na comunidade, alugou um apartamento perto de seu trabalho e foi seguindo a vida. Pouco mais Helenita se desentende com o namorado, faz acusações de que não é amada, volta à casa de Lola onde passa mais dois longos meses até o dia em que Acássio vai até lá e pede sua mão em casamento à sua mãe e seus irmãos. Há quem diga que foi assim. Há quem diga que foi pé no bucho que Helenita nera besta não! Certa ela, diziam todos!
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, flamenguista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri