Fosse na cidade ele teria chegado pelas asas da cegonha, mas não há cegonha no Sertão, o que havia era seca muita, trabalho muito e comida pouca. E filhos são arrimo de família, é o que sempre se soube, e Cicim chegou, o sétimo filho daquele casal de sertanejos. Há sempre uma história sobre o filho número sete, mas a desse menino não era de lobisomem.
Depois dele, viriam mais seis e restaria completa a família. Era pequeno, mas taludinho, de uma beleza rara por aquela região dada a vida sofrida que não permitia certas belezas que são oriundas da boa alimentação. Não digo que houvesse fome que isso mexe com o orgulho do sertanejo, mas também não se pode falar de fartura. Eram tempos difíceis e uma família tão numerosa, havemos de concordar que não havia como nutri-los de tudo o essencial.
Certa feita, o avô vem para visita-los e diante de tanta formosura do pequeno, declara aos pais o desejo de leva-lo consigo às terras da cajazeira onde possuía uns hectares de terras agricultáveis e bem irrigadas pelos mananciais da chapada que no sertão eram escassos. Lá produzia cana-de-açúcar na maior parte que repassava aos engenhos daquele pé de serra, e no restante semeava milho, feijão, fava, macaxeira, jerimum, além de algumas fruteiras que na época da safra abundavam por ali.
Contava o pequeno com uns oito anos; parecia um bichinho moribundo, mas belo. Perto dos irmãos era como se tivesse nascido predestinado à realeza. Tirante aquela adiposidade espantosa, o olhar de cobra verde. O avô, no dia da partida, segurou-lhe a mão e ele cerrou com força os seus dedos. Gemeu alto, soluços de saudades que sentiria dos irmãos. Saiu dali chorando. No dia seguinte já estaria na cajazeira de Santantoin.
De início sentiu muito a falta dos irmãos, no primeiro mês chorava diariamente ao ocaso. O avô percebia e se chegava pra ele contando histórias do lugar. E para alegrá-lo sai com essas: — Na festa de São José tira as flechas do pendão da cana e troca por bombinhas e traques em seu Manel de Sales, e ia ludibriando a saudade do menino.
Meses se passaram e o pequeno foi ganhando peso, e ficou roliço, e mesmo sendo filho de um sertanejo trabalhador, tendo irmãos trabalhadores, e vendo diariamente os primos irem à roça, o cabinha vivia ocioso. O avô não deixava ele trabalhar. Passou-se assim aqueles quatro anos, de maneira que se acostumou e não dava um prego nua barra de sabão, como dizem. Os pais criam direito e os avós estragam. Máxima confirmada.
Já entrava para o quinto ano longe dos irmãos e dos pais e Cicero que desde que chegara, de obrigação só tinha as lições do ABC na escola da Vila, ademais era só brincar e comer, engordara bem que o bucho alumiava. Foi por essa época que o pai veio em visita ao sogro, trazia consigo dois dos irmãos maiores, nos animais, duas sacas de fava para vender ou trocar por outros legumes. De presente para o avó metade de um veado que o filho mais velho caçara dias antes.
— Bença, pai! Falou Cicero ao se aproximar do pai. Este ao olhar para o garoto, ficou embelezado. Depois olhou para os irmãos de Cicero, e sentiu-se mal. O sentimento que tomou conta de sua alma naquele momento beirava a sensação de que estava sendo injusto. Como tendo treze filhos e filhas, reservaria a um o privilégio da boa vida e da fartura enquanto os outros, alguns ainda pequenos, sobreviviam na escassez penosa do sertão.
Os irmãos ao avistar o pequeno Cicero ficaram maravilhados, era como um semideus, pele macia, cabelo aparado, roupa nova e gordo, bem gordinho. Um deles que tinha 13 anos chegou a reverenciá-lo como a um monge, mas não ousaram abraça-lo, havia um receio em tocar um ser de aparência superior. Foi Cicero quem tomou a iniciativa e foi abraçar os irmãos.
O pai, depois de longa conversa, repassando notícias do sertão e sabendo das novidades, anuncia ao sogro que vai levar o garoto. Houve certa relutância, mas ao fim da conversa, acabou por ceder, afinal, era o pai. Enxergou justiça na decisão.
O garoto acabou voltando na garupa de um dos burros. Era uma imagem um tanto quanto engraçada. Entre os dois caçuás, um menino de treze para catorze anos esquálido, franzino, queimado pelo sol sertanejo e logo atrás, o Cicinho, rechonchudo, roliço. O burro aguentaria o retorno?
Saíram cedinho, nem bem a barra do sol pintou no nascente. Viajaram o dia todo, chegando ao destino `a boquinha da noite. Como era verão, o dia se estica invadindo o que em outras épocas já é noite. No terreiro, a família aguardava, os outros irmãos de todas as idades, uns já rapazinhos e moças, outros ainda pequenos. Havia em seus olhares um brilho diferente, seus olhares sertanejos havia uma espécie de reverência e admiração. Uma felicidade de quem recebia a visita de um anjo ou santo. — Bença, mamãe! — Deus te dê fortuna, meu filho! —Como está bonito! Quis colocá-lo nos braços mas não ousara, era muito pesado. Vieram os irmãos e irmãs e o abraçaram. Alguém chorou!
Os dias que seguiram após aquele fim de tarde do retorno do menino Cicero foram marcados por um comportamento de proteção dos irmãos. Quando iam à roça reservavam para ele a condição de contador de história. Nem enxada levava. Passaram-se uns dois meses neste rojão, até que as histórias foram rareando, sem novidades, o efeito da reverência foi se acabando. E numa certa manhã quando Cicero levantou, tomou café com beiju com os irmãos, ao sair para o terreiro percebeu que havia uma enxada nova entre aquelas de sempre. O encanto acabara, muito melhor fosse um lobisomem!
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, flamenguista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri