Não, não transparecia cansaço nem fastio, embora a cena se repetisse há tantos e tantos anos. Apenas uma leve asa de indignação ruflava ao seu derredor. Como um moderno Prometeu acorrentado, fazia-se eterno pasto à águia do cristianismo. Parece até que ganhara a maldição da imortalidade. Ressuscitavam-no todo ano, em meio às velas, ao vinho e ao roxo da Semana Santa. No seu curto e sub-reptício reinado, fazia-se, rapidamente, senhor de uma quinta, ganhava roupas esfarrapadas, mas modernas, metia-se a cavaleiro. Metamorfoseava-se de uma personalidade qualquer escolhida entre os sempre novos e fartos Judas da humanidade e partia, no Domingo da Ressurreição, para o seu calvário particular. Até um testamento lhe seria providenciado, ele que não deixara sobre a Terra nenhum legado que fosse além da pura e cristalina infâmia. Até os 30 dinheiros, levara ao santuário antes do pêndulo do corpo e do final balanço da corda.
Suas memórias, se escritas, seriam um farto material para o estudo do inconsciente coletivo. Havia, com certeza, algo de sanguinário, de sádico e tribal naquela malhação. A simples encenação daquela selvageria, no fundo, contradizia-se frontalmente com as lições de amor, de solidariedade e compreensão que terminaram por permear todo o Novo Testamento. A primeira pedra que ninguém ousara lançar sobre Madalena, agora fariseus multiplicados aos montes atiravam nele com sanha animalesca, sem nenhum remorso, sem nenhum pejo.
Neste ano, ali estava novamente no cadafalso, aguardando o desenlace tão previsível. Enquanto observava a faísca zigzagueante do estopim, teve, por fim uma clara visão do mundo que um dia abandonara pensando em se livrar dos seus demônios e fantasmas. Na verdade a turba não malhava ao Judas, mas tentava destruir as imperfeições pessoais que via nele refletidas. É como se diante do espelho, o quebrassem, por temerem a imagem horrorosa mas verdadeira que se revelaria na superfície cristalina. Nada mudara em tantos anos! Bastava fitar a multidão para ver claramente presente e cristalizado em todos os corações o veneno um dia inoculado no Getsêmani: a indecisão de Pilatos, a tríplice negação de Pedro, a parcialidade de julgamento de Caifás, a eterna opção dos eleitores por Barrabás. Parecia claro para ele agora que não foram os filhos do Pai que povoaram o mundo, mas sim a raça de Judas. Sim, seus filhos tinham prosperado como nunca sobre a face da terra. Estavam muitos ali familiarmente reunidos, com suas fraquezas, suas indecisões e seus vícios bem à mostra: lábios preparados para o beijo fatídico, mãos entreabertas esperando, sofregamente, os trinta dinheiros.
Por J. Flávio Vieira. Médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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