“Sabemos hoje que não há ilhas, e que são vãs as fronteiras. Sabemos que, num mundo em constante aceleração, quando o Atlântico se atravessa em menos de um dia ou Moscou contacta com Washington em poucas horas, estamos obrigados à solidariedade ou à cumplicidade, segundo os casos. Hoje, a tragédia é coletiva. Sabemos pois todos, sem sombra de dúvida, que a nova ordem que buscamos não pode ser somente nacional, ou sequer continental, e muito menos ocidental ou oriental. Ela só pode ser universal.”
(Albert Camus 1913-1960)
As palavras acima são de Albert Camus que faleceu tão precocemente em 1960. O escritor francês, um Nobel de Literatura ( 1957) , escreveu um livro fabuloso que volta a se tornar atual nos dias de hoje: A Peste. No romance narra a saga de uma pequena cidade atingida por uma peste bubônica e o pandemônio que se instalou entre os seus habitantes. Visionariamente, a vila chama-se Oran, tão próxima daquela outra chinesa que disseminou uma das maiores pandemias dos últimos séculos, a chinesa Wuhan. Instalada a epidemia, como sempre, o pânico torna-se senhor da situação e é incrível perceber como se repetem os comportamentos , num salve-se-quem-puder incrível, não tão diferente do que aconteceu com a Peste Negra na Idade Média ou com nossas epidemias caririenses de Cólera e Varíola na segunda metade do Século XIX. Com mortalidade e sofrimento inimagináveis em países ricos como China, Itália, Alemanha, Espanha, a calamidade , de repente, vem bater no nosso portão. O COVID-19 já espreita suas vítimas com o ar soberbo de um carcará que , do alto da timbaúba , observa os pintinhos brincando no terreiro. E o país pára aterrorizado. Escolas fecham, cinemas, lojas e teatros cerram as portas, países lacram as fronteiras, pessoas se isolam, num pavor só comparável ao de cem anos atrás quando chegou a Gripe Espanhola. Só o comandante máximo da nação, na contramão do mundo inteiro, faz chacota e diz ser tudo histeria e invenção da mídia e do comunismo para amedrontar o povo.
Há razões mais que suficientes para preocupação. Primeiro, basta olhar ao redor e ver a carnificina que se abate sobre outras nações muito mais organizadas e ricas que a nossa. Alguns dirão que Deus é brasileiro, mas há informações de até ele anda usando máscara e álcool gel. Claro que não vivemos mais em tempos de Peste Negra, combatendo um inimigo totalmente desconhecido e tido como um castigo divino aos despautérios da humanidade. Devemos à Ciência ( tão perseguida e maltratada pelos atuais governantes e seus terraplanistas) a possibilidade única de sobreviver a esta ameaça com menos sofrimento e menos baixas. Sabemos que pela grande possibilidade de contágio, a melhor conduta sanitária para minimizar a velocidade da epidemia é o isolamento e a quarentena. E , junto, os cuidados higiênicos fundamentais de lavar as mãos, usar lenços, limpar superfícies , evitar aglomerações. Aí batemos de cara nos graves problemas de infraestrutura do Brasil e da nossa recente visão neoliberal onde a desigualdade é tida como uma coisa normal, até necessária e justa e o apoio às classes miseráveis e desfavorecidas tido como coisa de esquerdopatas.
Orienta-se a lavagem das mãos com frequência. Sempre é bom lembrar que dois em cada dez brasileiros não tem acesso à água potável. Além do mais , mais de 101 mil pessoas vivem na rua no Brasil, ou seja não têm água à disposição para o consumo e nem têm como se isolar em suas casas, já que moram debaixo de marquises e viadutos. Em 2017, tínhamos um déficit habitacional ( crescente nos últimos anos) de quase 8 milhões de residências. Pensem , por outro lado, na possibilidade de ficar em casa, isolado, por longo período os quase doze milhões de desempregados, na sua maioria sobrevivendo de bicos e virações. Recorde-se ainda que, mesmo nos empregados, 40% estão na informalidade a informalidade , hoje atinge quase 35 milhões de pessoas. Estas pessoas não tem qualquer segurança trabalhista. Como sustentarão as famílias esses pomposamente apelidados de novos empreendedores ? Mesmo os que estavam trabalhando, em 2018, tinham uma renda mínima vergonhosa: 60% ganhavam menos de um salário mínimo. O necessário fechamento das escolas traz ainda um problema adicional. Com quem os pais que irão para o trabalho deixarão seus filhos ? Se deixam aos cuidados dos avós podem aumentar o risco de contaminação do segmento mais frágil nessa epidemia: o da terceira idade. Importante frisar que muitos e muitos estudantes necessitam da merenda escolar para sobrevivência e segurança alimentar. No Brasil existem em torno de 12 milhões de crianças de 0 a 3 anos, mas apenas 3 milhões de vagas disponíveis em creches.
Em relação à nossa estrutura de saúde, a coisa não é menos preocupante. Só no orçamento deste ano o SUS perdeu mais de R$ 5 bilhões. A OMS preconiza um número mínimo de 2,5 a 3 leitos de UTI para cada 10.000 habitantes. A UTI é importantíssima numa epidemia como a do Corona. A oferta de leitos aqui tem diminuído nos últimos tempos. Temos hoje o percentual de 2,1 leitos, mas , na rede pública, apenas 1 leito para cada 10.000 brasileiros. As regiões mais deficitárias são as mais pobres: O Nordeste, o Norte e o Centro-Oeste. Para agravar mais a situação, apenas 10% dos municípios brasileiros têm leitos de UTI públicos ou privados. 60% dos municípios brasileiros —nos quais vivem 33,3 milhões de pessoas— não têm nenhum respirador disponível em suas unidades de saúde.
Por outro lado, se as determinações da Organização não tocam sequer o presidente da republiqueta do Brasil e o diretor da ANVISA, como esperar que cheguem aos quase 12 milhões de brasileiros a quem foi negado, pelo estado, reiteradamente, o direito sagrado da alfabetização e aos outros 38 milhões analfabetos funcionais?
Nos dias de hoje parece uma heresia falar em desigualdade social. Para o status quo quem não consegue um emprego ou um bom salário é por mera falta de mérito. Em 2018, a Desigualdade Social no Brasil bateu novo recorde: 1% da população mais rica tinha rendimento médio mensal de R$ 28.000,00 , enquanto 50% da nossa população ganhava a média de R$ 820,00 ( valor abaixo do salário mínimo da época). Em 2012, 5% da população brasileira vivia com apenas R$ 56,00 mensais e os 30% mais pobres ( 64 milhões de pessoas) com apenas R$ 269,00. Em 2018, essa calamidade piorou ainda mais.
Tenho a certeza de que venceremos o inimigo, mas tenho também a clareza de que as baixas seriam menores e os feridos em menor quantidade se nossos pelotões tivessem armas modernas nas mãos de todos os soldados. Triste constatar que uns portarão metralhadoras e outros terão apenas baladeiras e bodoques à disposição.
Talvez isso pouco interesse à Casa Grande, mas é sempre bom lembrar que todos esses fatores estão intimamente ligados à progressão das epidemias. Nem todos residimos na avenida paulista, como imaginam alguns políticos sulistas. Temos realidades que vão da Holanda a África Subsaariana. Nós podemos até pensar que só os miseráveis morrem. Mas as epidemias são sempre muito socialistas: dizimam, sim, em maior proporção, a pobreza, até porque ela é imensamente mais numerosa, mas ninguém pode se sentir a salvo e imune às suas garras. Na epidemia de Gripe Espanhola, no início do Século XX , pereceu Rodrigues Alves, nosso presidente à época. O Corona sabe, perfeitamente, que caixão continua não tendo gaveta e mortalha permanece sem bolsos adicionais.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri