“Se às vezes eu disser que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam
Não é porque eu julgue que há sorriso nas flores
E cantos no correr dos rios.
É porque assim faço, mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.”
Fernando Pessoa
No dia 23 de outubro, D. Ninette completaria seu centenário. Isso só é possível revelar porque ela partiu em 2012. Viva, não permitiria uma revelação desta, nem sob tortura. Com muita negociação talvez deixasse dizer que inteirara sessenta. As contemporâneas sempre me disseram que era a mais bonita da família.
Fez o Curso Normal no Colégio Santa Teresa e terminou na Escola Rural de Juazeiro sob a batuta de Amália Xavier. Foi professora em rede pública desde os anos 40, aposentando-se já nos idos de 1975, quando se transferiu com o velho Vieira para Recife, onde os três filhos já lá estudavam. Seus ex-alunos sempre me falaram de uma mestra amorosa e dedicada.
Em casa era meiga, mas endurecia facilmente quando havia necessidade. Não tinha, também, muitos querequequés com os filhos. Os irmãos se queixavam que ela tinha uma predileção especial por mim, talvez porque era o primogênito e aquele que deu mais trabalho a ela. Acometido de poliomielite na infância, teve que correr comigo por Recife e Salvador, para correção cirúrgica do defeito.
Era uma leitora voraz (adorava os Romances de A. J. Cronin e Sidney Sheldon) e mestra em Palavras Cruzadas. Ligada à música, principalmente à Bossa Nova, tinha “Ligia” de Tom, como a sua preferida.
Casou com o prof. Vieirinha em 1952 e, entre serras, chapadas, baixios e píncaros, teve uma vida longa e feliz. Comemoraram as Bodas de Ouro em 2002. Viveu em Crato até 1974 e, depois, em Recife até 1992, quando retornou. Desde então ficou com o marido no Sítio Gravatá em Potengi. Uma casa simples, na fazenda, de início com pouca estrutura. Era muito urbana, mas resolveu acompanhá-lo já que aquele era o sonho dele. Nunca reclamou. Depois da partida de Vieirinha em 2005, retornou ao Crato, mas nunca mais foi a mesma, alguma coisa dela havia também partido quando ele nos deixou.
Era elegante, vaidosa e bem humorada, em meio à aparente casmurrice. Da mesma idade do esposo (era um mês mais nova) fazia milagres com seu curto salário de professora pública aposentada. Tinha até poupança, cujo saldo era um segredo de estado.
Era católica, mas frequentava templos de inúmeras religiões (kardecistas, umbandistas, Sheicho-No-Ie) , acreditava que todos eram rios que desembocavam na mesma foz sagrada.
Em 2012, recebeu o chamado e partiu para o outro lado da cortina. Ficamos atônitos como uma Ave de Arribação que se perde do seu bando. Aprendemos com ela a existência real das flores e dos rios. O perfume ainda rescende no ar, as águas ainda molham e umedecem nossos dias.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri