Havia inúmeras razões para o Revdo. Padre Vicente Antonio Petico ser tão reverenciado na Vila de Matozinho. A mais importante delas, talvez, fosse tão inencontrável nos dias de hoje: sua vida não se distanciava das suas palavras e pregações. Chegou por ali já passado nos anos, com uns sessenta e lá vai pedrada. Nunca se soube de qualquer falcatrua ou deslize do sacerdote, nem no campo financeiro, nem no âmbito da sexualidade e nem mesmo nas ações sociais. Chegou pobre como os matozenses e, depois de mais de vinte anos à frente da igrejinha de N. S. dos Supliciados, continuava exatamente como chegara: com uma mão no feixe e outra no facho. Estava disponível para a comunidade em todas as horas e dias e as limitações da idade não estreitaram essa disposição. A outra faceta que tornava o nosso Padre Vicente apreciado era o apreço por seus paroquianos. Petico era muito turrão e ortodoxo como caixa de palito Gina. Não admitia transgressões de paroquianos no templo: mini saia, decote mergulhante, cabeça sem véu. Expulsava os transgressores como um dia Jesus pôs pra correr os vendilhões do templo. Não permitia menino se danando na missa, levava-os arrastados pelas orelhas cabanas para bem distante da porta principal e advertia os pais prometendo labaredas do inferno a quem não educasse seus rebentos: não há moca nesse mundo que peia não cure. Essa brabeza de Vicente tornou-se folclórica e, inclusive, aumentou em muito sua popularidade junto aos fiéis. Outra característica importante de Petico é que conhecia por nome e sobrenome todos os seus paroquianos. Qualquer forasteiro que resolvesse ir à capelinha era imediatamente inquirido sobre suas procedência e devoção. Tempos passados — comentava-se como um capítulo da história oficial da vila — cangaceiros resolveram invadir Matozinho e fazer um arrastão no comércio. Muitos cidadãos remediados fugiram, com medo, para cidades do entorno. Advertido, o padre arregimentou um pequeno batalhão de mais de vinte matozenses mais destemidos e , espalhados dentro do tempo e na torre da igreja, receberam os invasores a bala. No ponto mais alto da torre estava empunhando seu rifle papo amarelo o destemido pároco Vicente Petico. O fogo não durou nem quinze minutos e os cabras se dispersaram, depois de umas cinco baixas, subindo pela Serra da Jurumenha e não se teve mais notícias deles.
Pois um belo dia, o nosso Padre Vicente Antonio Petico dirigiu-se à igrejinha de N. S. dos Supliciados para celebrar a missa diária das 17h, hábito que já mantinha há mais de trinta anos. Quando adentrou o templo, encontrou a farta coleção de fiéis espalhados pelos bancos duros da igrejinha. Estranhou, no entanto, uma diferença. No púlpito, à frente, encontrava-se um sujeito metido num paletó meio amarrotado e pegando marreca, com um livro aberto e falando, em voz empostada de barítono, em nomes que não lhe eram estranhos: Josué, Javé, Moisés, Abraão. Fechou o cenho e aproximou-se do altar mor e o inquiriu ainda demonstrando uma calma que não lhe era habitual.
— Se mal pergunto, quem é o senhor e o que está fazendo aqui no meu templo, falando umas arisias e pastorando o meu rebanho?
O rapaz baixinho, com metade da envergadura de Padre Petico, não se fez de rogado. Engrossou ainda mais a voz e apresentou-se:
— Meu nome é Melquisedeque Cartuchino de Lima. Sou novo aqui nessa cidade. Sou pastor de uma igreja alternativa e vim aqui botar pra funcionar a nossa Igreja Miraculosa Anabatista do Evangelho Piramidal, a única com conexão on line com o Criador.
Padre Vicente controlou-se como um miúra antes de entrar na arena. Pausadamente, então, enveredou por mais detalhes relativos àquela verdadeira ingerência de fundo religioso.
— Sim, seu Melquisedeque, tudo bem, a Constituição diz que há liberdade de culto, mas o que é que o senhor está fazendo aqui no meu templo? Porque não vai obrar seus milagres na sua pirâmide?
Melquisedeque, então, resolveu engrossar o caldo. Tinha chegado há uma semana e ainda não possuía templo. Resolvera, então, aproveitar a clientela e a igreja de Padre Vicente, já que, pelo que sabia, aquela bíblia que ele tinha nas mãos era exatamente igual do sacerdote católico.
Como era de se esperar, caiu a última gota que entornou o copo de vinho do vigário, coisa que não era difícil de acontecer porque o cálice já vivia eternamente pelas beiradas.
Padre Vicente, então, pegou a trave da porta principal da igreja que mais parecia a linha principal do casarão do Coronel Anfrízio Maia e disse veementemente: — As bíblias não são iguais não, viu seu Bruda! Mas eu igualo já. Deu uma primeira travada no lombo de Melquisedeque e o homem criou sustança nas canelas e ganhou a rua. Atrás dele vinha nosso Padre Vicente e, a cada igualada no pé do ouvido do outro pregador, ele mais criava distância.
A partir desse momento quem nos relata o resto da novela é Jeremias Norato, o cronista da oralidade de Matozinho que nas horas vagas trabalhava também como barbeiro.
— O porco queixada em TPM chamado de Padre Vicente desceu rua abaixo tentando igualar as bíblias que, segundo ele, tinham algumas diferenças. No primeiro quarteirão, defronte a casa do prefeito Sinderval Bandeira, já com quatro lamboradas de trave no toitiço, se muito faltava para igualar os dois livros era uns três dedos. Na esquina da Bar de Giba, as bíblias, sob força de paulada, já tavam emparelhadas e eram irmãs gêmeas. Quando, no fim da rua, Melquisedeque criou sebo nas canelas, depois de umas dez igualadas e pegou o gramear, serra acima, a bíblia de Padre Vicente já tinha passado, pelos meus cálculos, uns quinze a vinte livros mais.
À noite, recolhido, segundo Jeremias, o Padre Vicente, bom servo de Deus, escreveu uma carta a seu superior informando o ocorrido e o grande problema espiritual que tinha lhe invadido a alma. As bíblias, salvo um ou outro livro, não são tão diferentes… Uns quinze dias depois, relata Jeremias Norato, o padre recebeu uma carta em resposta. Tranquilizava-o pelo ato violento e da perda de controle. O único problema, segundo o bispo, era gráfico. Na edição das próximas bíblias, segundo ele, pelo excessivo igualamento procedido por Padre Vicente, onde imprimiu a força de trave, como se fosse as tábuas de Moisés no Monte Sinai, os novos livros sagrados iriam ter pelo menos mais umas 400 ou 500 páginas.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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