Durante décadas, a imagem da mulher brasileira esteve colada à maternidade. Era quase um destino traçado: casar, ter filhos, cuidar da casa. Mas os tempos mudaram, e o Censo 2022 veio como uma espécie de espelho: a taxa de fecundidade caiu para 1,55 filhos por mulher — muito abaixo da chamada taxa de reposição populacional, de 2,1. E, mais do que isso, as mulheres estão tendo filhos mais tarde, quando decidem ter.
Essa não é uma mudança repentina ou arbitrária. A ciência demográfica acompanha o fenômeno desde meados do século passado. Nos anos 1960, a média era de mais de seis filhos por mulher. Era um Brasil rural, com pouco acesso à educação formal e a métodos contraceptivos. As mudanças vieram com o avanço da urbanização, o crescimento do ensino feminino e, principalmente, com o planejamento familiar deixado de ser tabu.
Muitas dessas decisões, hoje, são movidas pela autonomia. Quando uma mulher escolhe adiar ou mesmo não ter filhos, está exercendo o direito básico de decidir sobre o próprio corpo, o próprio tempo e, sobretudo, o próprio futuro. E isso não é um movimento isolado ou meramente individual. É o reflexo de uma sociedade que começa a permitir outras formas de realização — inclusive para as mulheres.
Por trás das estatísticas estão camadas de causas sociais. Mulheres estudam mais, trabalham fora, sustentam casas inteiras e, muitas vezes, não têm rede de apoio para dividir o cuidado com uma criança. E se os filhos dependem não apenas de amor, mas também de creche, alimentação, estabilidade emocional e segurança, então a decisão de adiar ou abrir mão da maternidade é, muitas vezes, uma demonstração de lucidez — e não de frieza.
Há também uma mudança silenciosa nos valores. Se antes a maternidade era tratada como “natural” e obrigatória, hoje ela é mais frequentemente discutida como escolha. A mulher que diz “não quero ter filhos” ainda enfrenta julgamentos — sobretudo em famílias e círculos mais tradicionais —, mas já não é um escândalo. É uma possibilidade, reconhecida com mais empatia por quem entende que a vida não é roteiro fixo.
Curiosamente, quanto mais acesso à educação e à saúde reprodutiva, menor a taxa de fecundidade. O dado não é apenas técnico; ele revela que o conhecimento liberta. Uma mulher bem informada sabe como se prevenir, conhece seus direitos e, mais importante, aprende que pode escolher o que quiser — inclusive querer menos, ou nada, no campo da maternidade.
A idade média da maternidade no Brasil passou de 26,3 para 28,1 anos em duas décadas. Isso significa que muitas brasileiras estão esperando mais tempo para planejar uma gravidez — quando têm estabilidade, quando estão em relacionamentos mais maduros, ou simplesmente quando sentem que chegou a hora. Isso também é cuidado, com o filho e consigo mesma.
Num país ainda marcado por desigualdades, é preciso reconhecer: a decisão de ter ou não filhos é influenciada também por classe, cor, território. Mulheres negras, pobres, periféricas e indígenas continuam com taxas mais altas de fecundidade. Não porque sejam menos esclarecidas, mas porque vivem em contextos em que o acesso a serviços básicos ainda falha. A justiça reprodutiva é, também, uma questão de justiça social.
No fim das contas, os números do Censo não falam de uma crise. Falam de um novo tempo. Um tempo em que ser mãe não é destino, é decisão. Um tempo em que o planejamento da vida inclui, com cada vez mais força, a pergunta: eu quero? Porque a maternidade, mais do que biologia, é — e precisa continuar sendo — um exercício de liberdade.
Por Mirta Lourenço. Médica, professora, cronista e poetisa
*Este artigo é de inteira responsabilidade da autora, e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri