Chamava-se Francisco Dandin, jovem tímido, fisicamente parrudo, mas incapaz de qualquer forma de agressão a quem quer que seja. Em se tratando de aventuras dos tempos de criança e adolescência, sempre fora um coadjuvante. Sobrando pra ele sempre a parte anedótica daquelas aventuras. Quando tinha 9 anos, brincando de índio com os primos e amigos de sua idade, foi alvejado nas costas por uma flecha de madeira quando resolvera se esconder atrás de umas bananeiras. Certa feita engasgou-se com uma banana casca verde quando numa empunhação para ver quem comia mais rápido uma daquelas bananas.
Era assim, a vida do Francisco, sempre marcado por pequenas tragédias nas quais ele era a vítima. Sempre tinha sido assim, até o dia em que um filho de um cangaceiro dos tempos de Lampião, de alcunha Dandu, um senhor que se considerava ex-cangaceiro e gozava de certo respeito por parte dos moradores da vila o condecorou com o título de Aritana. Dandu, era um senhor com quase nove décadas, que de tanto ouvir as histórias do pai sobre o bando de Lampião, tornara-se uma espécie de Dom Quixote Nordestino, e mantinha-se preso aquele passado das histórias de cangaço tantas vezes ouvidas. Ele tinha um casal de irmãos, um chamado seu Ioiô, que era menos afeito ao cangaço, talvez por ser mais jovem ou porque sua prole, dois filhos, exigiam muito de sua atenção porque eram, como se dizia antigamente, fracos do juízo. Havia também a irmã, dona Liquinha, moça velha, ficara no caritó por opção, diziam, o que não se dava muita credibilidade, haja vista sua aparência de bruxa de desenho animado e a crueldade com que tratava os alunos nas aulas. Foi umas das primeiras normalistas que se tem notícia naquela comunidade. Era uma pessoa da igreja, ajudava o pároco e era a catequista mor da comunidade. Some-se a essas tarefas o fato de que ela tinha uma escolinha, onde estudava o Francisco, na qual passava os ensinamentos da gramática, da matemática e dos estudos sociais, além de impor a moral cívica e religiosa às custa da palmatória.
Pois bem, certa feita seu Dandu presenciou uma cena em que Francisco que na época contava com 12 anos e era um dos alunos de dona Liquinha, resolveu por conta e risco na ausência da mestra, botar moral na turma, acabou por impor respeito e implantar o silêncio no braço, como era novato ali, a turma receou e acatou a autoridade do valentão. Seu Dandu viu ele naquele dia e ali o batizou de Aritana.
Não se sabe ao certo quem fora Aritana, seu Dandu tirou essa alcunha das histórias heroicas dos cangaceiros ouvidas nas narrativas de seu pai. Até onde se sabe, tratava-se de um jovem cangaceiro destemido, de origem indígena, cuja valentia e liderança eram suas maiores qualidades. Como Francisco tinha os cabelos escorridos e pretos, e demonstrou valentia, ficou sendo o Aritana e daquele dia em diante passou a ter a admiração e respeito de seu Dandu, que certa vez chegou inclusive a lhe mostrar seu punhal de cabo colorido vindo das arábias trazidos pelos mouros turcos.
Para seu Dandu não havia ninguém mais valente naquela vila. E Francisco, gozava da fama sem no entanto dá nenhuma outra prova além daquela presenciada por seu Dandu. Passaram-se os anos, Francisco saiu da escola de Dona Liquinha e foi para o grupo escolar mas não perdeu o contato com seu fã número 1. Seu Dandu atingira a marca dos noventa anos e caminhava a largos passos em busca do centenário. Já dava indícios dessas escleroses que aniquilam as memórias. Esquecia o nome da filha ou do filho, suas companhias já que era viúvo, esquecia às vezes de abotoar as calças, ou vestia a camisa às avessas, mas o que seu Dandu não esquecia era da valentia de Aritana. Encontrava-o na rua vindo da escola, falava: “Aritana, cabra valente igual a tu não tem!” Francisco ficava fofo feito passarinho choco. Na turma ninguém ousava discutir a valentia, nem experimentar. E os dias seguiam assim com o Aritana valentão ad hoc.
Acontece que ser considerado valente não é como ser considerado herdeiro. Para a herança vai-se nos documentos cartoriais e se comprova herdeiro; a valentia não, diante da contestação de alguém, só no braço haverá de se comprovar. E foi assim que certa vez vindo da folia de carnaval, Aritana e dois primos e mais três amigos, se depararam com um garoto mais ou menos da idade do Aritana que era de uma família de gente mais ou menos rica, diziam. Este tipo de gente gosta de humilhar os pobres, disse Aritana. É preciso que alguém dê uma lição neste filho de papaizim. E à medida que ia chegando perto, ia xingando o outro garoto. De início, o rapazinho que estava sentada na calçada de sua casa, sozinho, ficou indiferente, mas Aritana insistia no xingamento e chegando bem próximo, empurrou o jovem.
Uma tensão tomou conta da cena. O garoto olhou para Aritana, perguntou se ele queria brigar, jogou as chinelas japonesas de lado, armou os punhos e disse: “tu quer brigar? Pois vamos brigar!”. O que se viu a partir dali foi um massacre, tanto o garoto batia em Aritana como Aritana apanhava. Murros, tapas, cangapés, que hoje chamam voadoras. Peia pra dez, Aritana levou sozinho porque os amigos que nada fizeram para evitar as ofensas, nada fizeram para separar na hora do piau. Eles carregavam em seus íntimos o desejo de ver aquela farsa cair.
Acalmados os ânimos, Aritana, agora ex-valentão todo dolorido, olho roxo, com umas raladuras das quedas, só chorava. Foi uma cena lastimável de se ver. Ninguém se meteu, Aritana estava errado, o garoto certo, estava quieto em sua calçada e Aritana veio arengar. Legítima defesa, ou ataque como queiram já que só Aritana apanhou.
Contudo, o mais triste nisso tudo não foi o cacete que Aritana levou. O mais triste foi que seu Dandu presenciara tudo à meia distância, a vista já estava curta, mas mesmo assim deu pra ver o massacre e a queda de uma lenda. Lenda essa criada por seu Dandu. Ele não acreditava que Aritana, o menino mais valente da Vila tinha apanhado daquele jeito. Seu Dandu se negava a acreditar. Não, não pode ter sido ele. Naquele poeira, não deu pra ver direito! Não era. Aritana é valente! Pensava enquanto seguia para casa.
Depois do fatídico dia, seu Dandu tivera seu quadro de saúde físico e mental agravado e fora viver seus últimos no hospital da cidade. O peso dos quase cem anos estava demais, os mais de oitenta anos defumando os pulmões com fumo de Arapiraca resolvera cobrar a conta. Muita gente da comunidade fora visitá-lo no hospital, entre os visitantes Deca, um cabinha magrelo e batuta, melhor amigo de Aritana e fã das histórias que seu Dandu contava sobre o cangaço, estava presente. Seu Dandu o reconheceu, olharam-se por alguns segundos, e seu Dandu fez a pergunta fatal: “Era Aritana? Era Aritana naquele dia levando aquela surra daquele galego?”. Ao ouvi-lo, compreendeu o cabinha magricelo o valor o valor da ilusão, e com a serenidade de quem trazia um perdão de uma confissão de unção, diz: “Era não seu Dandu. Parecia, mas não era Aritana não!”. No dia seguinte pela manhã entre sorrisos e lágrimas de satisfação morria em seu leito o criador de Aritana, livre da decepção de sabe-lo frouxo!
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri