Na tentativa de cessar ou ao menos diminuir o preconceito, uma curitibana usa as redes sociais para informar sobre a doença rara que possui e encorajar outras pessoas que também possam ter algum diagnóstico semelhante.
Karina Andressa Rodini tinha pouco menos de dois anos quando descobriu a neurofibromatose, que é um conjunto de doenças genéticas que afetam, mais notadamente, a pele e o sistema neurológico.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), a condição se origina de mutações genéticas que resultam em sintomas imprevisíveis. Um dos principais sinais da doença consiste no aparecimento de nódulos e tumores na pele (neurofibromas), de tamanho variável.
Aos 31 anos, o maior tumor de Karina fica na perna e pesa cerca de 35 quilos.
“Muitas pessoas me perguntam por que eu me exponho, mas não é que eu quero mostrar o lado ruim ou para que tenham pena. Eu quero mostrar que, mesmo com a doença, eu saio, eu curto. É coragem de expor para ajudar outras pessoas”, disse ela.
Devido ao agravamento da doença, ela precisou largar o emprego que tinha de auxiliar administrativa em um centro universitário.
“Até 2020, antes da pandemia, eu estava trabalhando, eu sempre trabalhei, desde os 16 anos, nunca fui de querer ficar deprimida em casa. Sempre gostei de sair, ir em shopping, baladinha, festinha. Dava sexta-feira eu já estava na rua, queria sair. Aí veio a pandemia e a minha situação se agravou, até parece que foi combinado”.
Com mais tempo livre para se cuidar, ela começou a pesquisar mais sobre a doença e percebeu que no Brasil ainda há pouca informação disponível sobre a neurofibromatose. Por isso, cada material que encontrava e a ajudava de alguma forma no dia a dia, ela decidiu compartilhar nas redes.
“Eu não sou especialista, mas sinto na pele isso. Vejo muitos vídeos, leio muitos artigos. Se estão em outro idioma, eu traduzo ali e tento entender. Se funciona, se me ajuda, se acho que pode ser bom também para outra pessoa, eu compartilho lá. Mas sempre tenho o cuidado de ver se é verdadeiro. A gente tem que acreditar na ciência e pesquisar em fontes seguras, não acreditar em qualquer coisa”.
Atualmente, Karina tem quase 34 mil seguidores no Instagram. Ela afirma que logo no início, nas primeiras publicações, sentiu o apoio de várias pessoas. Contudo, uma pequena parcela se assustava com as fotos ou achava que era montagem de computador.
“Vieram comentários desagradáveis, porque as pessoas achavam que era montagem, que tinha alguém querendo lucrar em cima daquilo. Só que eu não me importei e decidi continuar. Eu vejo que são pessoas que não têm conhecimento. E isso não deve acontecer só comigo, só com a neurofibromatose, afinal existem mais de 3 mil doenças raras, muitas que a gente nem sabe que existe”, afirmou.
De acordo com o Neurofibromatosis Center, no Brasil, existem cerca de 80 mil pacientes diagnosticados com neurofibromatose tipo 1.
Atualmente, ela mora com a mãe, a dona Fátima, de 60 anos. Karina contou que a mãe teve que parar de trabalhar para cuidar dela, e elas vivem com um salário doença que usam para os custos da casa como aluguel, alimentação, além dos cuidados médicos.
Saga por tratamento
A neurofibromatose não tem cura e também não possui tratamento específico comprovado.
“Quando era pequena, minha mãe me levou no médico porque eu tinha muitas manchas ‘café com leite’, e não era uma ou duas, aquelas que a gente acha bonitinho, eram diferentes. Eu não tinha tumor, não tinha nada que fosse um problema grave. Os anos foram se passando e as manchas começaram a aumentar mais. Nas minhas pernas, as manchas começaram a ficar mais elevadas, cresciam para cima e, até então, o médico dizia que não podia fazer nada. Se a neurofibromatose ainda é desconhecida, anos atrás era muito mais”.
Foram anos de idas a médicos e pesquisas por conta para conseguir superar os desafios diários da doença. Quando chegou a adolescência, a neurofibromatose se agravou e tumores começaram aparecer.
“Com uns 12 anos, eu fiz uma cirurgia e tirei um cisto de 8 quilos do ovário. Era um tumor benigno, era na época de escola, e eu até parecia uma grávida. Fui no médico e eles detectaram o cisto, disseram que eu tinha que fazer uma cirurgia e eu fiz. Até então não havia cirurgia para a neurofibromatose. Eu continuava indo no médico e nada”.
Karina contou que por volta dos 15 anos, aquelas manchas começaram a se desenvolver ainda mais, e os tumores passaram a ficar maiores. Quando a mãe dela se mudou para Foz do Iguaçu, no oeste do Paraná, ela fez a primeira cirurgia de neurofibromatose.
“E aí eu passei mais um tempo em Foz, terminei meus estudos, e sempre buscando algo para poder fazer cirurgias. E nenhum médico queria mexer porque não tinha experiência. A gente se mudou, fomos para São Paulo, também não tivemos sucesso lá. Voltamos para Foz e também não tinha o que fazer, e aí nos mudamos para Curitiba. De 2012 até 2018, foram umas nove cirurgias, mas sempre que eu tiro um quilo, voltam dois, porque a neurofibromatose é um tumor enraizado e muito vascularizado, então ele cresce. Aí aquilo foi me injuriando”, explicou.
Busca por ajuda
Até o fim do ano passado, ela fez 10 cirurgias de grande porte no total, e várias pequenas para retirar nódulos. Segundo Karina, todos os procedimentos operatórios foram feitos por cirurgiões plásticos, porque no Brasil não existem médicos cirurgiões especialistas em neurofibromatose tipo 1.
“Eles [médicos] só fazem mesmo essas cirurgias para me ajudar a aliviar o peso, para eu conseguir andar, fazer minhas coisas. Mas, na última cirurgia que eu só tirei um quilo e saí do hospital muito inchada, muito grande, nada me servia, eu queria dar um basta naquilo tudo. E foi aí que eu pensei preciso colocar na internet, preciso buscar ajuda”.
Ao começar a colocar publicações relacionadas à doença nas redes, apareceram pessoas sugerindo médicos de outros estados.
“Só que eu não tinha dinheiro para ir atrás desses profissionais. Aí eu decidi abrir uma vaquinha para poder custear essas idas e vindas. Em fevereiro de 2019, fui para Minas Gerais em um centro que era referência em neurofibromatose. Fui com a expectativa de que houvesse alguma solução porque eu queria ir a um lugar que eles me falassem: ‘a gente vai poder retirar tudo ou fazer uma cirurgia para amenizar esse peso’. Eu queria que tirassem 10, 15 quilos, mas não era possível porque perdia muito sangue”.
Karina então retornou para Curitiba voltando novamente para a estaca zero, mas sem desistir de conseguir ajuda em outro lugar.
“Recebi um monte de indicação falando para ir em um geneticista, no Hospital Erasto Gaertner. Nessa consulta eu tive mais informação do que na minha vida inteira, eu nem imaginava que esse remédio existia. E ele me pediu uma porrada de exames. Daí levei todos os resultados e ele me encaminhou para uma oncologista porque só esse especialista pode receitar remédios de terapia oral”.
Esse geneticista que explicou minuciosamente a neurofibromatose para Karina foi José Claudio Casali da Rocha, que atualmente é o chefe do departamento de Oncogenética do Hospital A.C. Camargo Câncer Center, em São Paulo.
O médico explicou um pouco sobre os pontos que conversou sobre a doença com ela.
“Apesar de não ser uma síndrome raríssima, a gente tem pouca informação. Como a neurofibromatose é considerada uma doença sistêmica, pega vários órgãos, exige que você tenha vários especialistas, então você tem que ter geneticista, um dermatologista, um cirurgião plástico, um cardiologista, um ortopedista, porque é muito comum ter desvios de coluna, escoliose, lordose, cirrose, coluna fica bem torta, oftalmologista, neurologista, fora a quantidade de medicamentos”.
José Claudio Casali contou que na época propôs que ela fizesse um tratamento com um medicamento classificado como “terapia-alvo”.
“Não é uma quimioterapia, embora os pacientes falem muito que estão tomando quimioterapia. A gente chama o remédio que a Karina toma de inibidores do MEK, o Trametinibe. Essa enzima chamada MEK é uma enzima do ciclo celular, que controla o crescimento das células. Eu vi que a neurofibromatose usa o gene NF1 como uma via genética, e aí a gente vai lá e bloqueia essa via”.
Segundo ele, com esse medicamento, o estímulo da neurofibromatose é “desligado” e com isso para de criar tumores.
“Há dois anos ela parou de ter um crescimento nos tumores, eles diminuíram, ficaram até pendurados, porque vão dissolvendo. Então pela primeira vez a gente trouxe para ela mais qualidade de vida. Teve um controle da dor, ela não estava conseguindo caminhar, agora já caminha, com dificuldade ainda. Um dos lados já foi operado, agora a ideia é operar o outro lado e continuar usando medicamento. Como é um tumor de características benignas, é diferente de um câncer, que a gente trata e ele diminui logo, até desaparece. Tumor benigno, do jeito que ele cresce devagar, também diminui devagar. Vai levar muitos anos para a Karina”, disse.
Próxima cirurgia
A próxima cirurgia para retirada do maior tumor que já teve – o de 35 quilos – está marcada para 16 de novembro deste ano, no Hospital Marcelino Champagnat, em Curitiba. Por conta do peso desse tumor, ela possui problemas de coluna – escoliose grave – e também muita dor muscular.
Com autorização do seu outro médico, Alfredo Benjamim Duarte Silva, o médico americano Dr. McKay McKinnon irá operá-la. Ele é de Chicago, nos Estados Unidos da América (EUA), e é especialista em neurofibromatose.
Segundo ela, McKinnon vai fechar a clínica dele e vir para o Brasil exclusivamente para fazer essa cirurgia.
“Descobrimos ele com ajuda da internet. Minha irmã entrou em contato e ele falou que viria ao Brasil, mesmo com a pandemia, porque se eu fosse para lá os custos seriam muito caros, hotel, passagem, hospital. O doutor até queria vir ano passado, mas eu já tinha feito uma cirurgia, então não tinha como fazer outra em cima. Para conseguir custear, começamos a fazer vaquinhas para juntar dinheiro”.
Karina disse que com a forte divulgação dela e dos seguidores, e também ajuda dos portais de notícia que espalharam a história dela, uma das vaquinhas já ultrapassou a meta de R$ 170 mil, atingindo quase R$ 200 mil.
O plano de saúde de Karina cobrirá o hospital e internação. O dinheiro da vaquinha será para pagar a cirurgia, o custo da vinda do médico e uma pinça cauterizadora que o plano não cobre.
“Eu comecei na correria para divulgar, falar que eu precisava daquilo, porque a todo custo eu quero fazer essa cirurgia. Até que as coisas foram se encaixando, as pessoas começaram a fazer entrevista, e muita gente começou a ver. Nessa vaquinha, não deu nem 24 horas e já tinha batido a meta para eu pagar a cirurgia. Agora eu preciso esperar o dinheiro cair na conta para poder transferir para eles e o médico poder vir para o Brasil. Tirando o valor da cirurgia, o resto é para o pós-operatório, que eu vou sofrer muito, e vai ter que comprar aquelas meias de compressão, curativo, remédios, materiais, etc”.
Ela explicou que recebeu algumas críticas por conta das vaquinhas. Isso porque algumas pessoas alegam que ela não vai usar o dinheiro para a cirurgia, ou que está “usando” a doença para ganhar.
“Muitas pessoas acham muito caro, eu acho um pouco, mas por outro ponto de vista, há muitas cirurgias que passam de milhões. Não é caro para uma cirurgia em que o médico vai sair dos EUA e vir para o Brasil, vai fechar a clínica dele, vai deixar de ganhar dinheiro lá para estar aqui, viajar horas para estar aqui, fazendo uma cirurgia e cuidando de um paciente. Tem pessoas que apegam muito: ‘nossa, quanto dinheiro’, mas e se fossem com elas? Com um pai, um filho? Se eu fosse pagar tudo isso iria ficar mais de R$ 500 mil, e essa ajuda que recebi não tem preço que pague”, disse.
O médico que auxiliou muito com informação, medicamento e cuidado, José Claudio Casali, afirmou que se sente muito grato pela ajuda das pessoas com ela porque a neurofibromatose além de impossibilitar de fazer muitas coisas, também mexe com a autoestima, e é isso que essa cirurgia também devolverá à Karina.
“É uma síndrome que é muito de pele, de desconfiguração, as pessoas ficam retraídas porque se sentem envergonhadas, não querem se expor, não querem mostrar o rosto, mostrar as partes que estão deformadas. Então todos esses aspectos que a gente fala, que, além de tratar do tumor, é cuidar da pessoa como um todo. Trazer essas pessoas de volta à sociedade para retornarem a ser produtivas e voltarem a ter convívio social. A maioria dos pacientes com neurofibromatose vivem à margem da sociedade porque sofrem sempre essa crítica do olhar do outro”.
Dificuldades e preconceito
Karina relatou que quando era criança não tirava muitas fotos, porque se sentia diferente das outras crianças, mas apesar disso, procurava não se abalar.
“Sempre teve bullying, e eu até ligava, mas não mostrava que eu ligava. Normalmente me dava muito bem com as outras pessoas, mas antes de sermos amigas sempre ficavam com medo de perguntar o que era. A doença não é transmissível, mas eu escuto relato de pessoas que quando pegam um ônibus as outras pessoas trocam até de lugar para não ficar perto com medo de pegar, ou conversar. É uma doença genética, não é transmissível”.
Ela contou que atividades que parecem simples no dia a dia, se tornam difíceis para ela, como andar de ônibus ou avião, devido ao tamanho das poltronas.
“Se eu for pegar um voo, as poltronas dos aviões são muito pequenas, então não dá para eu sentar. Em ônibus, não consigo passar a roleta. Com o peso do tumor, eu fico mais cansada para andar também. Pego um banco para tomar banho às vezes, pois sinto falta de ar para ficar em pé. Questão de roupas, principalmente a parte debaixo, eu tenho muita dificuldade de encontrar uma que me sirva para comprar”.
Outro fator impacta também nos planos futuros dela, nos sonhos. Como a doença é genética, e a maior parte dos pacientes herda do pai ou da mãe essa pré-disposição, caso um dia a Karina pretenda gerar um filho, existem chances de a criança nascer com a neurofibromatose também, de acordo com Casali.
“A chance de passar o gene é de 50%, algo que nós chamamos de autossômica dominante, independe do sexo, pode passar para homem ou mulher. Então, é uma síndrome que na maioria das vezes vai ter padrão familiar, mas também tem, em 1 a cada 5, situações como a da Karina, que nem a mãe e nem o pai tem a doença, ela foi a primeiro caso”, revelou ele.
Rede de apoio
Karina disse que nunca conheceu pessoalmente alguém com neurofibromatose, mas que após começar a publicar informações sobre a doença na internet, outros pacientes começaram a interagir com ela e trocar experiências.
“Começaram a chegar muitas pessoas dizendo ‘eu também tenho’, ‘não tem tratamento aqui no meu estado’, ‘desisti de fazer o tratamento porque não encontro médico’, e assim foram chegando várias pessoas. É muito boa essa troca, eu até criei um grupo com 100 pessoas no WhatsApp para dividir informações, experiências”.
Pensando no futuro, depois da cirurgia, Karina disse que uma das primeiras coisas que quer fazer quando estiver recuperada é viajar e aproveitar a liberdade de estar sem a maior parte do tumor.
“Quero muito ir para alguma praia ficar um tempo lá, ir na minha avó que mora em Foz. Quero me divertir, curtir a vida. Quero voltar a fazer minhas coisas sozinha sem depender de ninguém, quero trabalhar, quero ser feliz”, concluiu.
Fonte: G1