A poltrona preta no canto da sala de casa em Rio das Pedras (SP) foi escolhida a dedo por dona Helena Pereira dos Santos. Acompanhada da neta, vagou por muitas lojas testando várias até encontrar a que queria ganhar de aniversário. No último novembro, completou 111 anos de uma vida que se resume em força, alegria, mas principalmente leveza e gratidão por mais de um século de experiências: “o segredo é ter paz”, explica com uma risada boa.
A carteira de identidade não mente. Dona Helena veio ao mundo na primeira década do século passado: 23/11/1908. Nasceu em Nova Itarana, na Bahia, e se a memória dela não falha, às 21h na zona rural nordestina.
Passou a vida inteira casada com um homem só, pra quem faz uma oração quando a saudade aperta um pouco pra Deus cuidar onde ele estiver. Colocou a aliança com 26 anos e não a tirou do dedo mesmo após a morte do marido há 16 anos. Viver bastante parece ser coisa de família: ele só partiu aos 103 anos.
Coração nordestino em São Paulo
A vida que dona Helena relata não tem muito mistério. Nasceu na fazenda onde a família trabalhava. Na vida nordestina, passou pelos mesmos serviços dos parentes, trabalhando na lavoura de mandioca, na “panhação” de café, e ainda fazendo uma das coisas que mais gosta: costurar.
“Gosto de costurar a roupa, e costuro a mão. Já costurei vestido pra noiva, vestido para as madrinhas”, exemplifica pra deixar claro o quanto é prendada na técnica.
Faz inclusive os próprios vestidos. “Teve uma vez que fomos comprar um pra ela usar, mas ela disse: ‘pra que? Já fiz o meu’”, conta uma das netas, Maria Aparecida dos Santos, a Cida. A personalidade forte de dona Helena ainda não deixa que ninguém escolha as roupas que vai usar além dela, revela.
Após perder o marido, resolveu mudar pro interior de São Paulo, onde uma das filhas e a neta estavam, porque gostou do lugar. Não se lembra o ano que mudou pra Rio das Pedras, só a idade que tinha, 107 anos.
“Aqui pra mim é mais fácil, você sabe por quê? Tinha que ir no médico [na Bahia], não tinha médico. Aqui a gente vai qualquer horinha, uma dorzinha que a gente sente no corpo e médico tem toda hora”, resume.
Dos cinco filhos que teve, apenas duas continuam vivas: uma que ficou na Bahia e Maria dos Santos, que mora com a mãe na mesma casa em Rio das Pedras. Veio para cuidar de um câncer no interior de São Paulo já que as dificuldades eram muitas na cidade baiana. Eles chegavam a pagar R$ 100 só para sair da zona rural e ir até um lugar onde tivessem um médico.
“A gente paga aluguel, mas vive bem”, resume Maria sobre a vida em Rio das Pedras. Da família, ainda soma 10 netos e 14 bisnetos.
A simplicidade da vida
Na cidade de pouco mais de 30 mil habitantes, a vida de dona Helena continua simples. Ela conta que gosta de caminhar pra ir ao mercado, “estirar a perna”. “Aqui a gente sai, anda. Gosto de fazer um exercício pro meu corpo, pra não estar ficando entrevada. Quando a gente fica parada demais, dá aquela dor, aquele cansaço de ficar quieto”, explica dando o ar de importância da atividade.
No Mercadão de Piracicaba (SP), cidade vizinha, dona Helena adora ir pra fazer a outra coisa que mais gosta: comprar alimentos, principalmente verduras. “Na Bahia, a gente só conseguia comprar verdura a cada oito dias”, explica a filha Maria. “Aqui ela sempre encontra ‘né’”.
Em Rio das Pedras, já é conhecida pelos moradores e, inclusive, os funcionários de um dos mercadinhos onde dona Helena pode matar a saudade do nordeste. É ali que ela encontra os ingredientes da região natal pra fazer algumas receitas típicas, como Cuscuz de Puba.
Pra comprar a farinha de mandioca, faz que nem aprendeu na Bahia: experimenta um “tiquinho” pra ver se está boa. O segredo da receita é simplesmente comprar farinha baiana, explica.
Nesse roteiro diário, quem vê dona Helena andando nos corredores custa a acreditar que ela já tem 111 anos. A baiana caminha sem apoio de ninguém, sai do carro sem precisar de nenhuma mãozinha, abaixa e levanta sem perder o equilíbrio, desce a rampa do supermercado “na carreira”, com passos tão ágeis como se não tivesse tantas décadas acumuladas no corpo.
A neta Cida conta que ela não tem problema nenhum de falta de saúde. Só tem um detalhe que ela precisa de atenção: a pressão alta que a faz ter que tomar um remédio regularmente.
“Eu me agradei muito daqui, só o clima que me dá uma tosse, quando é o tempo do frio, que eu fico tossindo”, conta dona Helena sobre a única dificuldade que diz ter de acostumar com a região.
Fora isso, dá só um trabalhinho pra família. “Toda vez que sente algo, uma dorzinha de cabeça, ela quer ir no médico”, conta Cida. Se é mania de aproveitar o que não tinha na Bahia ou prevenção, ninguém sabe, mas tirando as visitas médicas e o remedinho pra pressão, dona Helena só não deixa de tomar as vitaminas que não vive sem.
Bom humor, fé e muita paz
Dona Helena abre um sorriso largo enquanto segura um vestido no meio da sala de casa. De tecido preto com detalhes coloridos, ele é um dos muitos que ela costurou na vida. Após posar de modelo para as fotos, ela dá uma das inúmeras risadas que esboçou durante toda a entrevista e se mostra satisfeita com a atenção toda que recebeu:
“Eu estou velha assim, e o povo está tudo me adorando [risos]”, brinca.
Até ela tem dificuldades em definir qual o segredo de se viver tanto. Ela conta que já comeu muito feijão, que tem que comer bem pra ficar forte, dorme bem, faz um exercício. Alegria também é muito importante, cita dona Helena.
“O povo me pergunta como sou alegre com 111 anos. Eu agradeço pela vida, de estar semeando o mistério que Deus me deu.”
Se chegar tão longe na idade já é de se espantar, com a mente sã e a memória boa é ainda mais admirável. Ao ser questionada sobre o quanto ainda quer viver, dona Helena fala que espera ainda fazer muitos anos e comemorar todas as idades. Gosta de fazer festa no aniversário. “Fé em Deus pra pegar 112 anos”, planeja.
Sentir de verdade é outra coisa que a aposentada não abre mão. Não segurou as lágrimas de alegria por estar contando a história dela. Logo no começo da entrevista, o lencinho na mão enxugou a emoção do momento.
Para ela, enquanto a pessoa tiver paz, para viver, na hora de comer, na hora de beber o café, pra dormir, os anos de vida vão se esticando. “O segredo é ter paz, e acreditar em Deus, que ele cuida do princípio da vida até o fim, Ele ajuda”, resume.
Entre tantos agradecimentos e sorrisos, ela só tem um pedido para os dias que ainda terá de vida. “Só peço a Deus que não deixe eu caducar.”
Fonte: G1