Uma ponte é necessária para ligar dois pontos que convergem para o nada. É na ponte que a passagem acontece e a transcendência aprimora o fluxo. Por sobre a ponte está a necessidade de ir e vir, está o apaziguamento das interligações, está a eterna procura dos opostos. Atravessar pode significar prosseguir ou retornar, sendo que só mesmo o devaneio permite o parar sobre a ponte e o se debruçar no delírio misterioso da existência.
Do alto, em sua forma mais leve, a ponte pode ser o altar dos apaixonados em uma desesperada travessia, justamente quando o amor sente a vertigem da efemeridade ou o rigor da perduração. Pode ser que o enredo da fantasia escolha a ponte para tecer uma rede de espionagem a partir de um ponto qualquer. Em sua forma mais crua a ponte pode ser o cadafalso do suicida. Em sua mais profunda forma mais crua a ponte pode ser o pano de fundo de uma tragédia transformada em espetáculo pela hediondez da natureza humana.
Em um dia sorrateiramente encrustado na memória seletiva de um calendário, eis que se ergue uma ponte para além do já erguido, muito após o já engenhado e posto para flutuar em cima do concreto armado. Nela, os destinos cruzados de mais uma crônica da violência crônica que assola o Rio de Janeiro a janeiro, cidade das milícias, do narcotráfico, do crime organizado em facções eleitoreiras, da corrupção incansável do poder público, berço atual da defensoria da tortura, da procuradoria geral da Ditadura Militar, do ministério público da licença para matar, do sabor sombrio de um supremo tribunal da primeira morte em cadeia nacional de um discurso de ódio e de violência para combater a violência.
Bandido bom é bandido morto. E ele está posto, servido para o deleite de uma horda tão criminosa quanto ele, tão sedenta quanto às câmeras de última geração prontas para captar a tragédia da pobreza, da particularidade intestina de um tormento transformado em crasso exemplo de quão pesada é a mão do estado, estado que mata e distribui balas perdidas para adocicar a desigualdade social. Diante de uma plateia real e outra virtual, existe uma ponte que liga a barbárie ao complexo imoral do justiçamento com as próprias mãos públicas. Essa é a mesma ponte que liga as promessas dos desvalidos aos braços abertos do cristo redentor, que projeta sobre a baia de Guanabara o ceticismo do seu cimento frio.
Witzel desceu na ponte armado de helicóptero, desceu por cima da massa, como todo governo fascista faz. Desceu comemorando como um gol a morte de um bandido. Uma confraternização do sadismo é dar vários socos no ar, em festa, em regozijo, em alegria demencial, por ter finalmente encontrado uma grande oportunidade de mostrar para o mundo como é que se retalha a carne dos marginalizados. Essa é a ponte em que desfilam os blocos dos miseráveis, a ala dos quilombolas, a comissão de frente dos indígenas, o carro alegórico dos homossexuais e a velha guarda do conservadorismo canalha. Sobre a ponte foram duas mortes, a do meliante oportuno e a da dignidade da vida pública brasileira.
A presunção da inocência no elogio do presidente em uma rede social, dado pela ação letal da força, relativiza de uma só vez os conceitos de ética e decência, solapados pelos aplausos sinceros dos curiosos, das vítimas, dos desocupados, e dos profissionais do ódio. A ponte não entrou para a história, ela pegou um beco de uma favela e foi se esconder da vergonha que deitaram em cima dela. Ela sabe que foi vítima dos malandros, dos proxenetas de repartições, dos escroques que pregam o amor divino revelado pelo dízimo. Quem passar agora na ponte Rio-Niterói, sentirá o bafejo diabólico da raça humana.
Por Marcos Leonel – Cidadão do Mundo
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